Denunciado por invasão de domicílio e desacato a autoridade por pedir vista de inquérito policial na Procuradoria da República de São José do Rio Preto (SP), quando ainda era estagiário, o hoje advogado Luiz Eduardo Kuntz teve a ação penal trancada. A decisão, publicada na quarta-feira (3/8), é do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A 1ª Turma da corte rejeitou, por unanimidade, recurso do Ministério Público Federal contra a rejeição parcial da denúncia e concedeu Habeas Corpus de ofício para trancar a ação penal por desacato.
Em 2009, o então estagiário do escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados — onde ainda trabalha — compareceu ao MPF de São José do Rio Preto para consultar inquéritos policiais de clientes do escritório. Durante a consulta, o estudante de Direito ouviu voz de prisão dos procuradores da República Álvaro Luiz de Mattos Stipp e Anna Cláudia Lazzarini, sob a acusação de invadir “área restrita” da Procuradoria e desacatar os procuradores. Segundo a OAB, ele ficou detido em uma sala sem poder usar o telefone, vigiado por seguranças armados, até que agentes federais chegaram para levá-lo de camburão à Delegacia da Polícia Federal da cidade. Ele é defendido pelos colegas de escritório Alberto Zacharias Toron e Fernando da Nóbrega Cunha.
Segundo a acusação, “o compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade é considerado ‘casa’ para fins penais”. A preocupação alegada seria com o extravio de processos importantes que passam pelo local, como inquéritos policiais.
No entanto, para o TRF-3, uma repartição pública, ainda que mantenha áreas restritas para funcionários, não pode ser considerada domicílio para fins penais. “O termo ‘repartição pública’ não se insere no conceito de casa previsto no parágrafo 4º, inciso III, do artigo 150 do Código Penal”.
A Turma afirmou, ainda, que as alegações dos procuradores sobre um possível desacato do então estagiário não tiveram fundamento. “O tipo penal em apreço pressupõe a prática de um ato ou emprego de palavras que causem vexame, humilhação ao funcionário, hipótese não configurada nos autos.” Com a rejeição do recurso, o colegiado concedeu, de ofício, Habeas Corpus para trancar a ação penal. A 4ª Vara Federal de São José do Rio Preto havia acolhido a denúncia de desacato.
“Da leitura das declarações das testemunhas de acusação ouvidas em sede policial (…), funcionárias públicas da Procuradoria da República de São José do Rio Preto, constata-se que ambas afirmaram não ter sido maltratadas pelo recorrido e também que não o viram maltratar ou desacatar qualquer funcionário daquela Procuradoria”, diz o voto da desembargadora federal Vesna Kolmar, relatora do recurso. “O fato de Eduardo ‘encarar a situação com certo desprezo’ e a funcionária se sentir desacatada por entender que Eduardo se comportou de forma ‘irônica’ é insuficiente a configurar o delito”, disse ela.
Briga de nervos
As versões sobre o acontecido divergem. Em depoimento à Polícia Federal, Kuntz afirmou que, como não conseguiu autorização nem pôde conversar com a procuradora Anna Cláudia Lazzarini, responsável pelo caso no qual tinha interesse, pediu a um funcionário da PF que fazia carga de um dos inquéritos para ver o processo. Segundo o estagiário, que garantiu ter uma certidão que lhe autorizava ver os autos, não houve oposição de nenhum dos funcionários à sua entrada, e também não havia sinalização de trânsito restrito no local. Porém, enquanto checava as informações, foi abordado pelo procurador Álvaro Stipp, que lhe deu voz de prisão. Kuntz não deixou por menos e rebateu também com voz de prisão contra o procurador, por abuso de autoridade, já que o local era público.
A história do MPF é diferente. Em nota de sua assessoria de imprensa, o órgão explicou que Kuntz invadiu a área onde ficam os processos mesmo tendo sido avisado pelos funcionários, remexeu autos e respondeu ser advogado quando abordado pelo procurador Álvaro Stipp. Diz a nota que, ao receber o estagiário, uma funcionária telefonou para a procuradora Anna Cláudia Lazzarini para pedir autorização de vista e Kuntz teria afirmado que não tinha de se identificar para ver um processo sem segredo de Justiça. Anna Cláudia se negou a atendê-lo sem que ele adiantasse o assunto. Diante da insistência, a funcionária falou pessoalmente com a procuradora, avisando que Kuntz ameaçara “subir e invadir” o gabinete da procuradora, pois “não precisava marcar hora para falar com procurador”, segundo o MPF. A servidora, então, teria sido orientada a reforçar a segurança.
O órgão ainda acusou Kuntz de falsa identidade. Segundo os procuradores, ele teria se identificado como advogado, quando era um estagiário. “O procurador e a procuradora desceram. Ao chegar, encontraram o cidadão. Ao ser indagado quem seria o advogado que estaria causando problemas, teria dito ‘sou eu’”, afirma a nota do MPF, que também refuta a história da detenção ilegal. “O advogado foi levado a uma sala de reunião, com banheiro, ar condicionado, onde fez ligações, enquanto esperava a chegada de agentes da Polícia Federal”, diz a nota, que assevera: “em nenhum momento o advogado admitiu que era um estagiário de Direito”.
Reação das classes
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil representou contra os procuradores Anna Cláudia Lazzarini e Álvaro Luiz de Mattos Stipp. A reclamação, entregue na Corregedoria-Geral do MPF acusa os procuradores de abuso de autoridade. De acordo com a representação, os procuradores não foram à delegacia para a lavratura do auto de prisão em flagrante e nenhum dos funcionários do MPF que presenciou a cena confirmou o desacato nos depoimentos prestados. Procurado pela ConJur na ocasião, o procurador Álvaro Stipp não quis atender a reportagem.
Além disso, o despacho dado pelo delegado federal que ouviu os depoimentos aponta uma contradição no que afirmou o MPF, diz ainda a OAB. Em telefonema ao delegado logo após a voz de prisão, a procuradora Anna Cláudia Lazarini avisou que o estagiário seguia preso para o distrito depois de entrar no prédio da Procuradoria identificando-se como advogado aos vigilantes, “fato não verídico, como demonstrado neste expediente”, disse o delegado no despacho.
“Ora, primeiro foi dada voz de prisão em flagrante por desacato, e o estagiário foi preso e conduzido até a delegacia. No dia seguinte, certamente percebendo o abuso praticado, os procuradores mudam a acusação?”, questiona a manifestação da OAB.
A representação contra os procuradores por abuso de autoridade foi arquivada sob o argumento de que o então estagiário, hoje advogado, estava sendo processado pelo crime de desacato. Com o trancamento da ação penal, porém, a OAB pode pedir a revisão do arquivamento.
Em nota, a Associação Nacional dos Procuradores da Repúbica rebateu as acusações. “A ANPR reitera a correção da conduta de seus associados, Anna Cláudia Lazzarini e Álvaro Luiz de Mattos Stipp, ciosos do respeito às prerrogativas de todos os profissionais que militam no foro e cônscios de que condutas abusivas e inconvenientes, de quem quer que seja, nas dependências da Instituição, devem ser repelidas como forma de prestígio ao Ministério Público e à dignidade de seus membros, agentes públicos detentores da missão constitucional de defesa da sociedade”, diz a nota da entidade.