Uma discussão de trânsito ocorrida em julho de 2009 no bairro da Barra da Tijuca, zona Oeste do Rio, está colocando a Associação de Juízes Federais do Rio (Ajufe) em oposição a membros do Ministério Público Federal do estado. Depois de uma longa investigação provocada por denúncias feitas pelo juiz federal Raffaele Felice Pirro, da 1ª Vara Federal do Rio, e sua mulher, a advogada da União Juliana Lidia Machado Cunha Lunz, filha da desembargadora federal aposentada Julieta Lunz, o feitiço virou contra o feiticeiro. A procuradora regional da República, Anaiva Oberst, denunciou Pirro e Juliana junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) pelos crimes de denunciação caluniosa e desacato.
Solidarizando-se com o juiz, a Ajufe contratou a advogada Fernanda Tórtima para defendê-lo. “Estamos adotando todas as medidas possíveis na defesa do colega. Temos absoluta certeza de que a denúncia não será recebida no tribunal. A Ajufe presta toda a assistência jurídica e é solidária ao colega Raffaele que está sofrendo este tipo de constrangimento”, explicou o presidente da Associação no Rio, o juiz federal Fabrício Fernandes de Castro.
A denúncia contra o casal e o advogado Jair Pinheiro Muniz — este, acusado de falso testemunho — foi motivada após um procedimento investigatório do Ministério Público, a partir de denúncias do juiz contra os policiais depois de um incidente de trânsito que Raffaele Pirro e sua mulher se envolveram.
Na manhã do dia 7 de julho, o delegado de Polícia Civil Vinícius George de Oliveira da Silva e os policiais civis Artur Augusto Teixeira Alexandre e Enéas Monteiro da Silva Junior, que passavam pela Avenida Lúcio Costa, na Barra, interferiram no caso ao notarem que o motorista da Pajero placa LPL 5824, em alta velocidade, tentava ultrapassar o veículo de placa NSB 3888, cometendo infrações de trânsito e dirigindo perigosamente.
Para a advogada Fernanda, a denúncia assinada pela procuradora Anaiva é inepta, pois “a investigação que a precedeu foi realizada de forma ilegal, já que à revelia do tribunal ao qual o magistrado está submetido. Além disso, foram as provas constantes dos autos analisadas de forma tendenciosa, chegando-se ao absurdo de denunciar quem, por motivos óbvios, figuraria como testemunha de defesa do magistrado. Disso tudo resultou o oferecimento de denúncia formal e materialmente inepta”, comentou com a ConJur.
O delegado Vinícius Silva, lotado no gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), tal como o parlamentar tem recebido ameaças de morte por investigações variadas que os dois fazem, principalmente em torno das milícias existentes no Rio. Os dois policiais que o acompanhavam faziam a sua segurança, oficialmente. Para abordarem o motorista da Pajero, segundo consta da denúncia, colocaram o giroscópio e acionaram a sirene, mostrando serem policiais.
Denúncia e defesa
Como descreve a denúncia, “mesmo vendo isto, o condutor da Pajero, com as mãos e a cabeça para fora do veículo gesticulou e gritou ‘vai se foder’ e perguntou ‘vai me prender?’ aos policiais que, por sua vez, permaneceram seguindo o procedimento apropriado de abordagem policial”. Raffaele confessou na Polícia que só parou seu carro ao notar que os ocupantes dos outros dois estavam armados. Eles se apresentaram com os respectivos distintivos policiais. Já o juiz e sua mulher, como narra a procuradora da República Anaiva, “não portavam a identificação funcional necessária para que os policiais se certificassem da condição de membros da magistratura federal”.
Ainda conforme a descrição da denúncia, o fato provocou a atenção dos transeuntes, “principalmente pelos gritos de Juliana, que em voz alta, denegria a posição dos policiais civis, ofendendo-os aos brados com palavrões de baixo calão, tais como ‘vocês calem a boca’, ‘ele é juiz Federal e nós vamos chamar a Federal’, ‘policiais de merda’. Ou seja, em um primeiro momento, o primeiro denunciado, detentor das prerrogativas próprias da magistratura, recusou-se a sair do carro de imediato, bem como a identificar-se e não conteve sua esposa que deliberadamente, mesmo sendo advogada, ofendia os policiais”.
A procuradora afirma ainda que “durante a abordagem a esposa do magistrado não estava sob coação de qualquer espécie, eis que ligou para a Polícia Militar e para o delegado da Associação dos Juízes Federais — Ajufe do Rio, Exmo. Dr. Roberto Schuman, que, por sua vez, acionou o Núcleo de Segurança Institucional do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Afinal, ninguém coagido sob a mira de fuzis operados por membros da elite da Polícia Civil fluminense iria facilmente dar diversos telefonemas como ocorreu no caso em questão”. Ela cita ainda o depoimento do major da PM Marcos Netto, assessor de segurança do TRF-2, que atestou ter sido o comportamento do delegado correto sem ter feito ameaças.
Já na sua peça de defesa, Fernanda Tórtima contradiz isto ao relatar que o juiz Raffaele “foi obrigado a parar o carro que dirigia e a dele se retirar, com as mãos ‘aparentes’ (fl. 223), ou seja, na humilhante postura de rendição, exigida dos suspeitos de infrações penais potencialmente perigosos”. Ela também alega que o próprio delegado Vinícius Silva em seu depoimento corroborou o que disse Raffaele no sentido de que houve “ameaça de prisão e do uso de algemas contra sua esposa, em razão de suposta prática do crime de desacato”.
Para isto, cita o depoimento do delegado na Polícia Civil quando ele afirma que se viu obrigado a ameaçá-la de prisão, diante dos xingamentos: “que ela mais uma vez estava querendo desacatar e que se não se acalmasse teria que prendê-la, chegando, inclusive a dizer para um dos policiais, o Arthur, tão somente preventivamente, com o intuito de fazer ela parar, para pegar as algemas, tendo o policial entendido e feito o gesto cabível, no que o motorista da Pajero, então, pela primeira vez se dirigiu ao depoente de forma calma e educada e pediu ‘pelo amor de deus Dr. Vinícius não faz isso, não pode algemar…’ sendo de imediato atendido e o policial que apenas retirara as algemas e ficado com elas nas mãos, recebido ordem e guardado as algemas”.
Com base nisto, a advogada diz que “não se discute terem o ora defendente e sua esposa sido submetidos a constrangimentos em sua liberdade de locomoção, inclusive por meio da ameaça do uso de algemas, o que só seria justificável, como se verá, caso houvessem eles praticado condutas criminosas”.
Entre os transeuntes que tiveram a atenção despertada para o episódio dois tornaram-se testemunhas. Ao lado do casal ficou o advogado Muniz, o qual, segundo a peça de acusação, se contradisse diversas vezes, inclusive trocando o nome de pessoas, entre elas o próprio Vinícius. Já o juiz do Trabalho Álvaro Luiz Carvalho Moreira, que caminhava pela praia com a mulher, parou com a confusão e, por conhecer o delegado de Polícia Civil, aproximou-se. Foi com a intermediação dele que o juiz Raffaele identificou-se, mostrando sua carteira nacional de habilitação.
Justiça, Polícia e MP
Na acusação, a procuradora Anaiva garante que “o juiz do Trabalho e o delegado procuraram arrefecer os ânimos, mas Rafaelle fez questão que todos fossem conduzido à Delegacia da Barra da Tijuca”. Lá, ele cobrou do delegado Carlos Augusto Nogueira Pinto o registro da ocorrência que o delegado acabou registrando como fato atípico, por não encontrar motivos justos, como relatou à procuradora. A ocorrência policial (BO 016-07531/2009) gerou o processo 2009.209.017752-0, junto ao IX Juizado Especial Criminal da Comarca do Rio de Janeiro, instaurado para apurar o possível abuso de autoridade do delegado e dos dois policiais.
Não satisfeito apenas com o procedimento instaurado na Justiça Estadual, o juiz Raffaele Pirro representou contra os policiais civis junto à Coordenadoria Criminal da Procuradoria da República, provocando uma investigação paralela sobre o episódio que teve início em uma discussão de trânsito entre ele e outro motorista que sequer foi identificado. Também prestou queixa na Corregedoria Unificada da Secretaria de Segurança, provocando com isto o afastamento do delegado do gabinete do deputado Freixo, com seu retorno à Polícia Civil onde ficou encostado até ficar provado que nada existia contra ele.
Nesta quarta-feira (17/8), ao comentar a declaração da advogada de que a investigação foi realizada de forma ilegal, a procuradora Anaiva lembrou que “as iniciativas não foram do Ministério Público nem da Delegacia, mas do próprio Dr. Raffaele. Ele esteve pessoalmente com o coordenador criminal da Procuradoria da República, José Maria Panoeiro, representando contra o delegado. Razão pela qual a investigação não tem nenhuma ilegalidade”.
Em todas as investigações abertas, a conduta dos policiais civis foi considerara normal, dentro das normas previstas, o que provocou o pedido de arquivamento das acusações que lhes foram feitas. O procurador da República Orlando Cunha também se manifestou pelo arquivamento. Isso propiciou ao delegado retornar ao cargo que ocupava no gabinete do deputado Freixo.
O juiz Raffaele Pirra recorreu da decisão. Já a Ajufe, segundo a procuradora Anaiva, representou contra o mesmo procurador na Corregedoria do MPF e no Conselho Nacional do Ministério Público.
Na análise deste recurso pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal o feitiço virou contra o feiticeiro. Partiu de lá a ordem para que o caso fosse remetido à Procuradoria Regional para que a conduta do juiz, que tem direito a foro especial junto ao TRF-2, também fosse analisada. No procedimento administrativo, a procuradora referendou o pedido de arquivamento das acusações contra os policiais civis (página 7 do documento) e concluiu pela necessidade de denunciar o juiz, sua mulher e o advogado que serviu de testemunha.
Nesta quarta, ao saber que o presidente da Ajufe considerou a denúncia como um constrangimento ao juiz Raffaele, o delegado Vinicius Silva rebateu: “Acho engraçado esta história de que ele está sofrendo constrangimento. Quando isto aconteceu, era uma coisa para ter terminado na rua mesmo, acabava ali, todo mundo ia embora. Mas ele quis isto tudo, ele acionou a associação e amigos que foram em bando ao presidente da Assembleia, no deputado Marcelo Freixo, no governador, no secretário de Segurança, no corregedor-geral unificado se queixarem de mim e pedir a minha cabeça. Os procedimentos foram provocados por ele, não foram por mim. Em nenhum momento eu provoquei, ataquei, acusei. Não fiz nada. Pelo contrário, eles provocaram os procedimentos formalmente e informalmente. Pediram minha punição e eu sempre disse em todos órgãos em quem fui que aquilo não passava de uma ocorrência de rua, que não deveria ter procedimento nenhum. Quem passou por constrangimento fui eu, que saiu publicado no Diário Oficial o meu afastamento, diante da pressão deles. Só que, logo depois, saíram as decisões da CGU e do Ministério Público Federal a meu favor, dizendo que agimos corretamente e não fizemos nada de errado. O procurador Orlando lembrou que na verdade, ali não tinha juiz federal, mas um cidadão como outro qualquer e que nós policiais não fizemos nada de errado. A minha saída da Assembleia — e eles não se incomodaram com isto — significava eu perder o carro blindado e a segurança, mesmo estando ameaçado de morte, como ainda estou”.
Vinícius Silva, que foi presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Civil, ainda que indiretamente, criticou a posição da Ajufe. “Eu registrei nos autos que quando fui presidente do sindicato defendia os membros do sindicato, mas tinha o cuidado de checar minimamente a história daquele sindicalizado. Tinha o cuidado de, minimamente, verificar quem era a outra pessoa, o que a outra pessoa falava. Não é um simples fato de ser um delegado, ser um juiz que está sempre certo, que está sempre falando a verdade”, concluiu.
Procurado pela ConJur após as declarações de Vinícius Silva, nem o presidente da Ajufe, Fabrício Fernandes de Castro, nem a advogada Fernanda Tórtima, quiseram se manifestar a respeito.