Essencial para a vida no planeta, a água é um recurso limitado, e por isso vem merecendo atenção e proteção especial do poder público, principalmente por meio da Agência Nacional de Águas (ANA). Em muitos casos, porém, a necessidade de sua preservação transborda os limites da ação administrativa, exigindo a intervenção do Poder Judiciário – quando não é a própria administração quem põe em risco esse recurso natural.
No ano passado, por exemplo, a Segunda Turma manteve decisão (REsp 1.249.683) que condenou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o município de Caucaia (CE) a remover pessoas que se instalaram em área de preservação permanente na margem esquerda do rio Ceará. A decisão determinou que o município fizesse o reassentamento das famílias em local disponível da cidade e a demolição das edificações irregulares. No recurso especial, o Ibama pretendia sua exclusão do processo, o que foi negado pelo STJ.
Na ocasião, o relator do caso, ministro Mauro Campbell, afirmou que o Tribunal de Justiça do Ceará nada mais fez que confirmar sentença que havia condenado o município a remover as pessoas instaladas irregularmente e reassentá-las em outros locais, além de obrigar o Ibama a impedir novas invasões e fazer cessar o agravamento da degradação ambiental local. “Até mesmo em razão do dever de fiscalização ambiental dessa autarquia”, observou.
Poço artesiano
Em decisão publicada quatro meses antes, a Segunda Turma discutiu (REsp 994.120) os limites da competência fiscalizatória municipal relacionada à perfuração de poço artesiano e sua exploração por particular. A questão teve início quando o município de Erechim (RS) autuou um condomínio e lacrou o poço artesiano. O condomínio recorreu ao Judiciário, e o tribunal estadual entendeu que a competência do município para fiscalizar referia-se, exclusivamente, à proteção da saúde pública. No recurso ao STJ, o Ministério Público estadual afirmou ser legal o ato da prefeitura.
A Segunda Turma concordou que o município tem competência para fiscalizar a exploração de recursos hídricos, podendo, portanto, coibir a perfuração e exploração de poços artesianos, no exercício legítimo de seu poder de polícia urbanístico, ambiental, sanitário e de consumo. “A Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos significou notável avanço na proteção das águas no Brasil e deve ser interpretada segundo seus objetivos e princípios”, considerou o ministro Herman Benjamin ao votar.
Ele lembrou os principais objetivos da legislação, observando que todos têm repercussão no caso analisado: a preservação da disponibilidade quantitativa e qualitativa de água, para a presente e as futuras gerações; a sustentabilidade dos usos da água, admitidos somente os de cunho racional; e a proteção das pessoas e do meio ambiente contra os eventos hidrológicos críticos, que ganha maior dimensão em época de mudanças climáticas.
“Além disso, a Lei 9.433/97 apoia-se em uma série de princípios fundamentais, cabendo citar, entre os que incidem diretamente neste litígio, o princípio da dominialidade pública (a água, dispõe a lei expressamente, é bem de domínio público), o princípio da finitude (a água é recurso natural limitado) e o princípio da gestão descentralizada e democrática”, acrescentou.
Autorizações nulas
Em 1998, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra o município de Joinville (SC), Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma) e Ibama, buscando a decretação de nulidade das autorizações deferidas pelos órgãos ambientais para supressão de vegetação de Mata Atlântica e licenciamento para construção de anfiteatro e ginásio de esportes.
Requereu, então, a condenação dos três à recuperação da área de 3,5 ha, com recomposição da vegetação e desassoreamento do curso d’água. Houve a condenação em primeira instância, mas o Tribunal Regional Federal da 4ª Região entendeu que, dada a largura do córrego (70 cm), a vedação ao desmatamento imposta pelo Código Florestal não se aplicava ao caso, devido às circunstâncias de reduzida ou nenhuma repercussão ambiental.
Ao julgar o caso, a Segunda Turma observou que a legislação somente admite o desmatamento de Área de Preservação Permanente quando o empreendedor comprovar que a obra, empreendimento ou atividade é de utilidade pública ou interesse social e,
com base nessa excepcionalidade, conseguir a necessária e regular autorização, o que não ocorreu.
Segundo o relator, ministro Herman Benjamin, o magistrado não pode afastar a exigência legal de respeito à manutenção de mata ciliar, sob o argumento de que se está diante de simples “veio d’água”. “Raciocínio que, levado às últimas consequências, acabaria por inviabilizar também a tutela das nascentes (olhos d’água)”, observou. “Mais do que nos grandes rios, é exatamente nesses pequenos cursos d’água que as matas ciliares cumprem o papel fundamental de estabilização térmica, tão importante à vida aquática, decorrente da interceptação e absorção da radiação solar”, acrescentou.
Especialista em direito ambiental, o ministro lembrou que o rio caudaloso não existe sem suas nascentes e multifacetários afluentes, mesmo os menores e mais tênues, cuja estreiteza não reduz sua essencialidade na manutenção da integridade do sistema como um todo. “Por tudo isso, há que ser refutada a possibilidade de supressão da mata ciliar baseada na largura do curso d’água”, afirmou.
Ao dar provimento ao recurso do MPF, ele observou, ainda, que “nulidade de pleno direito, nos termos da legislação ambiental, não admite flexibilização, como pretendeu o acórdão recorrido, sob pena de tornar absolutamente inócuo o mandamento constitucional em defesa da Mata Atlântica como patrimônio de todos os brasileiros”.
“Assim, é de se reconhecer
nulas as autorizações conferidas ao arrepio da lei e, portanto, inviável qualquer pretensão do município em prosseguir o desmatamento da gleba”, afirmou Herman Benjamin, para concluir: “Pelo contrário, urge impor aos agentes da infração (município, Ibama e Fatma) a recomposição do prejuízo ambiental, tal qual pleiteado na ação civil pública.”
Direitos em conflito
Em outra decisão (REsp 403.190), foi mantida condenação de proprietário de imóvel e do município de São Bernardo do Campo (SP) a remover famílias de local próximo ao Reservatório Billings, que fornece água a grande parte da cidade de São Paulo. A construção de loteamento irregular provocou assoreamentos, somados à destruição da Mata Atlântica.
Ao manter a condenação, o ministro João Otávio de Noronha afirmou não se tratar apenas de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de recursos financeiros, que, provavelmente, deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas. “Mas de preservação de reservatório de abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na área de preservação”, considerou o ministro. “No conflito entre o interesse público e o particular, há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos”, concluiu.
Vazamento tóxico
E o que dizer dos vazamentos de elementos tóxicos nas águas? Em caso julgado pela Primeira Turma (REsp 570.194), foi mantida condenação das empresas Genesis Navigation Ltd., Chemoil International Ltd., Liverpool & London P & I Association Limited, Smit Tak B.V., Fertilizantes Serrana S/A, Trevo S/A, Manah S/A e Petrobras, além da União Federal, Ibama, Superintendência do Porto de Rio Grande e Estado do Rio Grande do Sul.
O pedido do Ministério Público na ação civil pública ocorreu após vazamento de substância tóxica do navio MT Bahamas no Porto de Rio Grande e na Lagoa dos Patos, localizados no Rio Grande do Sul. O requerimento, na ocasião, era de realização de perícia complementar e de monitoramento espaço-temporal contínuo do processo de biacumulação de metais na área afetada pelo bombeamento/vazamento da mistura ácida contida no navio Bahamas.
Provado o vazamento do ácido sulfúrico no Estuário da Lagoa dos Patos, pelo navio Bahamas, a condenação foi mantida, para que o pagamento do monitoramento fosse feito pelos réus. “É manifesto que o direito ambiental é regido por princípios autônomos, especialmente previstos na Constituição Federal (artigo 225 e parágrafos) e legislação específica, entre os quais a responsabilidade objetiva do causador do dano ao meio ambiente”, lembrou na ocasião a ministra Denise Arruda (hoje aposentada).
A insistência da Petrobras em não querer ser responsabilizada ou não pagar custas adiantadas foi, inclusive, punida com a multa de 1%. “Todas as questões apresentadas foram analisadas e decididas, ainda que contrariamente à pretensão da embargante”, considerou Denise Arruda. “A embargante insiste – de maneira censurável e contrária à boa-fé processual – em tese já superada nesta Corte Superior. Evidencia-se, pois, o intuito procrastinatório dos embargos, impondo-se a aplicação da multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil”, concluiu a relatora.
Responsabilidade penal
Em um caso do Rio Grande do Norte (REsp 610.114), foi discutida a dificuldade da responsabilização penal da pessoa jurídica. A denúncia foi contra empresa de moagem e refinaria. “Foi constatada, em extensão aproximada de cinco quilômetros, a salinização das águas dos rios do Carmo e Mossoró e a degradação das respectivas faunas e floras aquáticas e silvestres, em decorrência de lançamento de elementos residuais de águas-mães pela denunciada”, disse a acusação.
“A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. Ocorre que a mesma ciência que atribui personalidade à pessoa jurídica deve ser capaz de atribuir-lhe responsabilidade penal”, considerou o ministro Gilson Dipp, relator do caso. Assim, se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal, tal como ocorre na esfera cível.
Apesar das considerações, a Quinta Turma negou provimento ao recurso especial. “Não obstante todo o entendimento firmado, no presente caso, a pessoa jurídica foi denunciada isoladamente, o que obstaculiza o recebimento da inicial acusatória”, entendeu o relator. “De fato, não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio (dolo ou culpa), uma vez que a atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa”, concluiu Dipp.
A discussão sobre essas e outras dificuldades na preservação do meio ambiente, em particular dos recursos hídricos, poderá encontrar algumas respostas durante o Fórum Mundial da Água, marcado para o período de 12 a 17 de março, em Marselha, na França. Maior evento sobre água do mundo, o encontro ocorre de três em três anos, desde 1997.