Em recente decisão proferida no dia 11 de outubro de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgando o RE 59068 (tema 163 da repercussão geral), de Relatoria do Ministro Roberto Barroso, fixou a seguinte tese: “Não incide contribuição previdenciária sobre verba não incorporável aos proventos de aposentadoria do servidor público, tais como ‘terço de férias’, ‘serviços extraordinários’, ‘adicional noturno’ e ‘adicional de insalubridade’”
Para melhor entendermos o entendimento firmado pelo Supremo, devemos partir de uma análise do que dispõe o artigo 40, §3º da Constituição Federal de 1988. Vejamos a redação do citado dispositivo:
Art. 40
3º Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei.
O conceito de remuneração, no âmbito do serviço público federal, encontra-se expressamente disciplinado no artigo 41 da Lei nº 8.112/1990, que possui a seguinte redação:
Art. 41. Remuneração é o vencimento do cargo efetivo, acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei.
Note-se, portanto, que no conceito de remuneração encontram-se abrangidas apenas as vantagens pecuniárias de caráter permanente, excluindo-se, pois, as verbas de caráter transitório.
Especificamente no tocante à incidência da contribuição previdenciária, no âmbito federal, a Lei nº 10.887/2004, em harmonia com o que dispõe a Lei nº 8.112/1990, estabelece que
Art. 4o A contribuição social do servidor público ativo de qualquer dos Poderes da União, incluídas suas autarquias e fundações, para a manutenção do respectivo regime próprio de previdência social, será de 11% (onze por cento), incidentes sobre:
§1o Entende-se como base de contribuição o vencimento do cargo efetivo, acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei, os adicionais de caráter individual ou quaisquer outras vantagens, excluídas[1]:
Nesse contexto, verifica-se que a intenção do legislador foi excluir, ante o caráter contributivo/retributivo do sistema previdenciário, as vantagens recebidas pelo servidor tão somente à título transitório, uma vez que as referidas parcelas não irão compor seus proventos de aposentadoria, não sendo devida, portanto, a incidência da contribuição previdenciária.
Note-se, ademais, que o citado §1º, in fine, trouxe um rol de parcelas que devem ser excluídas da base de cálculo da incidência da contribuição previdenciária, todas elas, em sua essência, de caráter temporário/indenizatório.
Ao nosso sentir, tratou-se de preciosismo do legislador, eis que ao determinar a incidência da contribuição previdenciária sobre o vencimento, acrescido das vantagens em caráter permanente, excluiu-se, por óbvio, as parcelas que não se enquadram nessa hipótese de incidência.
Ademais, entendemos não ser adequado “engessar” à legislação, eis que as relações jurídicas não são estanques, de modo que a criação de uma nova verba transitória, aliada a existência do referido rol, poderia dar margem para discutir-se se essa nova verba deveria sofrer a incidência da contribuição previdenciária, já que não consta no citado rol, a par do seu caráter transitório.
Nesse contexto, entendemos ser necessário considerar o rol constante no artigo 4º, §1º, incisos I a XXIV, da Lei nº 10;887/2004 tão somente como exemplificativo, devendo-se sempre analisar a natureza da verba para verificar-se se sobre ela deve incidir ou não a contribuição previdenciária, em sendo de caráter transitório, a não incidência é uma medida que se impõe.
Destaque-se, ainda, que o fato de eventual verba transitória não constar no referido rol, portanto, deixando de sofrer a incidência da contribuição previdenciária, não viola o teor do artigo 111, inciso III, do Código Tributário Nacional[2], segundo o qual interpreta-se literalmente a legislação tributária no que diz respeito à outorga de isenção.
Isso porque, no caso em análise, não se está diante de outorga de isenção, mas de hipótese não incidência, situações distintas.
A impossibilidade de incidência da contribuição sobre as verbas que não irão compor os proventos de aposentadoria pode ser analisada, também, sob a ótica dos artigos 40, §12[3], c/c artigo 195, §5º[4], ambos da Constituição Federal de 1988.
Isso porque a regra da contrapartida instituída pelo artigo 195, §5º, da Constituição Federal de 1988, é uma “via de mão dupla” ao mesmo tempo em que não há benefício sem fonte de custeio, não deve haver fonte de custeio sem benefício, nesse sentido destaco as lições do mestre Wagner Balera citado por Adriane Bramante, vejamos:
O Prof. WAGNER BALERA, profundo conhecedor da matéria previdenciária, assim escreveu:
“Devemos ter presente a regra da contrapartida. Nela está enunciado que não há benefício sem fonte de custeio, o que é absolutamente certo. Mas nela também está escrito que não há fonte de custeio sem benefício[5]
Nesse contexto, caso houvesse a incidência da contribuição previdenciária sobre uma parcela de natureza transitória, a qual não irá compor os proventos de aposentadoria do servidor, estar-se-ia instituído fonte de custeio, sem, no entanto, o seu correspondente benefício.
Ressalte-se que, nesse aspecto, não se poderia bradar a utilização do princípio da solidariedade para justificar a incidência da contribuição previdenciária, tendo em vista que o referido princípio não pode servir como justificativa para o cometimento de arbítrios por parte do Estado. Nesse sentido ensina Fábio Zambitte Ibrahim:
No entanto, cumpre notar que a solidariedade, elemento basilar e estruturante da sociedade, não se presta a justificar arbítrios. Muito embora cotizações exigidas de segurados e empresas não justifiquem, a priori, determinada contraprestação específica, a desvinculação não é plena, sob pena de transmutar a contribuição previdenciária em mero imposto. Há, na realidade, uma legítima expectativa, especialmente por parte dos segurados da previdência social, ao direcionar suas contribuições ao sistema protetivo, em receber uma prestação minimamente vinculada ao seu salário, como uma espécie de salário diferido. Não sem razão, Cortes estrangeiras têm admitido, com base na proteção geral ao direito de propriedade, que o Estado não possui a prerrogativa de usurpar contribuições realizadas ou impor cotizações totalmente descompromissadas com a realidade futura, sob pena de expropriação indevida.
Na realidade atual, é comum bradar-se a solidariedade como trunfo em favor de imposições descabidas e desproporcionais, de modo a expor os eventuais reclamantes como detratores da dignidade humana e do bem-estar social. O Brasil não escapa dessa infeliz tradição somente mudando os fundamentos. Nosso passo nos traz à mente os atos tirânicos da ditadura, com base na nebulosa segurança nacional, seguida pelo desconcertante e indefinível interesse público e, na realidade, do Século XXI, pela solidariedade. Esta, em momento algum, possui finalidade liberticida ou expropriatória, mas somente expõe a realidade de qualquer sociedade, mesmo em modelos liberais, que sempre demandam, pragmaticamente, algum auxílio mútuo, mesmo de forma forçada[6].
Felizmente, no caso discutido, o princípio da solidariedade não foi utilizado nesse intuito.
Destaque-se, ainda, que o precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento que já vinha sendo praticado pelos Tribunais Pátrios.
No mesmo sentido podemos citar os seguintes precedentes:
REsp 489.279-DF, r. Ministro Franciulli Netto, 2ª Turma do STJ:
O arcabouço previdenciário vigente está esteado em bases rigorosamente atuariais, de sorte que, se não houve lamentáveis distorções, deve haver sempre equivalência entre o ganho na ativa e os proventos e as pensões da inatividade. Se é certo que, no ensejo da aposentadoria, não será percebida a retribuição auferida na ativa concernente ao exercício de cargo em comissão, não faz o menor sentido que sobre o percebido, a título de função gratificada, incida o percentual relativo à contribuição previdenciária. Precedentes da Seção de Público.
EREsp 549.985/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª Seção do STJ:
…
O Eg. STF, apreciando a constitucionalidade da Lei 9.783/99 na ADINMC 2.010/DF, de relatoria do Ministro Celso de Melo, concluiu que: “o regime contributivo é por essência, um regime de caráter eminentemente retributivo” pelo que “deve haver, necessariamente, correlação entre custo e benefício.“
AC 2009.34.00.009331-6-DF, r. Des. Federal Reynaldo Fonseca, 7ª Turma do TRF/1ª Região:
…
Não incide contribuição previdenciária sobre verbas pagas a título de ressarcimento ou que não serão incorporadas aos proventos do empregado, por não comportarem natureza salarial. Feição indenizatória. Precedentes do STF, do STJ e do TRF/1ª Região.
Não incide contribuição previdenciária sobre as parcelas não inseridas nos proventos dos servidores e indenizatórias. Precedentes do STF, STJ e desta Corte.
Resta agora aguardar a publicação do acórdão por parte do Supremo Tribunal Federal para, acessando seu inteiro teor, verificar todo o conteúdo do julgado e a extensão dos seus efeitos. Entendemos, desde já, ter acertado a Corte Suprema na fixação da tese.
Autor: Odasir Piacini Neto, advogado no escritório Ibaneis Advocacia e Consultoria, Especialista em Direito Previdenciário, Mestrando em Direito das Relações Sociais pelo Centro Universitário do Distrito Federal, autor do livre Prescrição e Decadência dos Benefícios Previdenciários – Editora Juspodivm.
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[1] I – as diárias para viagens;
II – a ajuda de custo em razão de mudança de sede;
III – a indenização de transporte;
IV – o salário-família;
V – o auxílio-alimentação;
VI – o auxílio-creche;
VII – as parcelas remuneratórias pagas em decorrência de local de trabalho;
X – o adicional de férias
XI – o adicional noturno
XII – o adicional por serviço extraordinário
XIII – a parcela paga a título de assistência à saúde suplementar
XIV – a parcela paga a título de assistência pré-escolar
XV – a parcela paga a servidor público indicado para integrar conselho ou órgão deliberativo, na condição de representante do governo, de órgão ou de entidade da administração pública do qual é servidor
XVI – o auxílio-moradia
XVII – a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, de que trata o art. 76-A da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990
XVIII – a Gratificação Temporária das Unidades dos Sistemas Estruturadores da Administração Pública Federal (GSISTE), instituída pela Lei no 11.356, de 19 de outubro de 2006;
XIX – a Gratificação Temporária do Sistema de Administração dos Recursos de Informação e Informática (GSISP), instituída pela Lei no 11.907, de 2 de fevereiro de 2009;
XX – a Gratificação Temporária de Atividade em Escola de Governo (GAEG), instituída pela Lei nº 11.907, de 2 de fevereiro de 2009
XXI – a Gratificação Específica de Produção de Radioisótopos e Radiofármacos (GEPR), instituída pela Lei nº 11.907, de 2 de fevereiro de 2009
XXII – a Gratificação de Raio X
XXIII – a parcela relativa ao Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira, recebida pelos servidores da carreira Tributária e Aduaneira da Receita Federal do Brasilde 2017)
XXIV – a parcela relativa ao Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade de Auditoria-Fiscal do Trabalho, recebida pelos servidores da carreira de Auditoria-Fiscal do Trabalho
[2] Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
(…)
II – outorga de isenção;
[3] Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
(…)
- 12 – Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social.
[4] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
(…)
- 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.
[5] Apud PIACINI NETO, Prescrição e Decadência dos Benefícios Previdenciários, Editora Juspodivm, 1ª Edição, 2015, Salvador, p. 86
[6] BRAHIM, Fábio Zambitte, Curso de Direito Previdênciário, 17ª Edição, Rio de Janeiro, Impetus, 2012, p. 66