"União é maior litigante e maior prestador de serviços"

A União é o maior peso da Justiça. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça aponta que, dos cerca de 60 milhões de processos que tramitavam no Judiciário brasileiro em 2011, o “setor público federal” respondeu por 38%. São 22,8 milhões de processos para um único cliente. Por “setor público federal” entende-se União e autarquias. Se forem considerados só os processos em que a administração federal direta está envolvida, esse número cai para 3,3 milhões, segundo dados da Procuradoria-Geral da União (PGU) referentes a agosto deste ano.

O advogado-Geral da União, ministro Luis Inácio de Lucena Adams, não hesita em rebater os números. “Essa conta é injusta”, disse em entrevista à revista Consultor Jurídico. Justo, para ele, é levar em conta que a União é também a maior prestadora de serviços do país. “O Estado brasileiro atende 26 milhões de beneficiários de previdência social, lida com 30 milhões de contribuintes, com um milhão e meio de servidores federais, lida com 190 milhões de brasileiros que usam o serviço de saúde…”

De fato, o mesmo relatório do CNJ que elenca a União como o maior litigante do país, mostra o setor bancário em segundo lugar. Os bancos também responderam por 38% das ações em trâmite em 2011. Considerada apenas a Justiça Federal, a quem compete julgar casos em que a União está envolvida, no entanto, o peso do “setor público federal” salta para 77% dos processos. O dos bancos cai para 19%.

Mas se a União é o maior litigante do país, é mesmo injusto concluir que é a maior demandante. Dos 3,3 milhões de casos em que a administração direta está envolvida, a União é autora em 5% e ré em 95%, informa a PGU. A procuradoria ainda calcula que os dez principais temas sob sua responsabilidade movimentam cerca de R$ 122 bilhões. Isso ressalvadas as imprecisões dos valores atribuídos às causas judiciais – já que essas cifras só vão ser definidas ao fim de cada processo.

No âmbito da execução fiscal, o problema é maior. Até agosto deste ano, a PGF computou 26 mil processos de execução fiscal. Isso representa R$ 1,2 bilhão. No ano de 2011 inteiro, 40 mil processos de execução fiscal movimentaram R$ 2,1 bilhões.

A saída óbvia seria conciliar. Mas Adams conta à ConJur que ainda há certa insegurança quanto ao modelo de acordos que podem ser feitos. “Uma decisão aparentemente boa hoje, no futuro, pode ser considerada uma decisão errada”, diz. O que não significa passividade diante de números acachapantes.

Em 2011, mostra levantamento feito pela AGU, foram celebrados 36 mil acordos. Até junho deste ano, a Procuradoria-Geral da União acordou R$ 82 milhões. No ano passado inteiro, a cifra foi de R$ 30 milhões. “Parece uma gota d’água, mas na verdade, considerando a ausência de cultura, já é uma quebra importante”, resume Adams.

Leia a entrevista com o advogado-Geral da União, Lui Inácio de Lucena Adams:

ConJur — A grande questão é que a União é a maior litigante do país…
Luiz Inácio de Lucena Adams — Essa conta é injusta.

ConJur — Qual é a conta justa?
Adams — A União também é a maior prestadora de serviços do país. O Estado brasileiro atende 26 milhões de beneficiários de previdência social, lida com 30 milhões de contribuintes, lida com um milhão e meio de servidores no âmbito federal, lida com 190 milhões de brasileiros que usam o serviço de saúde… Essa coisa da litigância tem a ver com algumas características do modelo, como, primeiro, a própria lei. Ela preserva certa potencialidade de conflito, porque o conflito não surge exclusivamente da ausência de normas, mas a partir da aplicação das normas.

ConJur — Como assim?
Adams — A norma, na medida que mantém alguma ambiguidade, alguma falta de clareza, acaba sendo potencialmente passível de conflito. Quanto mais generalista, mais suscetível a interpretações diferenciadas.

ConJur — E que outras características contribuem para a litigância?
Adams — Também tem a ver com o próprio processo de formação da jurisprudência brasileira, que ainda não é um processo estabilizador. Temos um processo muito suscetível a mudanças, infiltrações, que fazem com que você sempre tenha uma chance de ganhar. Então vejo a necessidade muito forte de se ter um processo de uniformização maior do Judiciário ao produzir jurisprudência que observe de fato uma orientação uniforme para a sociedade. Inclusive quanto à clareza das razões. É a partir da razão que fundamenta a decisão que você extrai, ou não, consequências para outras ações. A clareza quanto aos fundamentos de uma decisão é tão ou mais significativa que a própria decisão em si, ou seja, a sua conclusão.

ConJur — O que se pode fazer para dirimir esses conflitos?
Adams — É tentar eliminar os pontos de tensão. Por exemplo, ao fazer a lei, procurar qualificar essa lei, ou formatar uma jurisprudência mais estabilizadora. A AGU colabora muito e atua muito nesse papel de auxiliar na qualificação e até na eliminação do conflito, estabelecendo canais de diálogo com a sociedade, para que se conciliem essas demandas.

ConJur — A União pode negociar conflitos judiciais? Não existem empecilhos burocráticos, como a Lei de Responsabilidade Fiscal?
Adams — Temos algumas limitações, mas a burocracia não chega a ser um empecilho. Porque depende da decisão do ministro, do advogado-Geral e do ministro da área responsável. A generalidade, em tese, lhe dá ampla liberdade de negociação, mas considerando que os cargos nos ministérios são políticos, se é muito mais conservador nesse processo.

ConJur — Por quê?
Adams — Porque o processo de transação é um processo de escolhas de risco, de ponderação de pretensões. Então, por que eu concilio? Ou porque eu acho que a pessoa tem direito ou porque eu acho que eu tenho risco de perder. É uma questão de ponderação, como no modelo americano, em que há o judicial hazard, o risco judicial. Por exemplo, se uma Câmara especializada para este fim delibera que o risco judicial é maior do que 10%, eles autorizam a administração tributária a fazer um acordo. É um processo de compreensão dos custos e benefícios. É melhor insistir no pleito ou é melhor conciliar? São modelos que eu acho que o Brasil ainda carece, porque ainda somos muito formalistas. Desculpe a expressão, mas nós adoramos o carimbo.

ConJur — Existe a preocupação dentro da AGU de tentar “desjudicializar” os conflitos?
Adams — Existe, mas o que nós temos é insegurança quanto ao modelo, porque uma decisão aparentemente boa hoje, no futuro, pode ser considerada uma decisão errada. E isso derruba todo um modelo. Ainda não temos uma compreensão exata do Judiciário e do órgão de controle sobre isso, o que torna essas decisões mais difíceis. Além disso, expõe as pessoas que tomam decisões a decidir pelo correto, adequado. E mais adiante, por mudança de interpretação ou entendimento, você cria um passivo para a pessoa. Então, por que você vai se expor? Acaba sendo um processo difícil. Mesmo assim, por exemplo, ano passado fizemos 38 mil acordos.

ConJur — Mas são 24 milhões de processos em trâmite…
Adams — Parece uma gota d’água, mas na verdade, considerando a ausência de cultura, já é uma quebra importante.

ConJur — E qual é o modelo de conciliação seguido hoje pela AGU?
Adams — Não tem um modelo específico, porque conciliação não tem padrão. Acredito que nós estamos construindo progressivamente um modelo de solução conciliada mais efetiva. Esse processo vai se consolidando com o tempo. Nós fizemos este ano, por exemplo, um acordo com o Luiz Estêvão para recuperar o passivo. Isso há três anos seria impensável, porque esse processo específico foi extremamente difícil, contaminado por uma experiência muito negativa de administração pública. Ao fazer essa conciliação, garantimos um tempo de fluxo razoável em oito anos e uma recuperação de mais da metade do ativo que está em cobrança. Isso dá um paradigma muito bom desse esforço de solução e mostra como o modelo vai crescendo.

ConJur — E que cautelas devem ser tomadas em casos como esse do Luiz Estevão?
Adams — O primeiro cuidado é quem negocia. Os segundo cuidado é ter um instrumento de negociação, de conciliação, de transação, que tenha instâncias supervisoras. Ou seja, o processo de entendimento não é concluído apenas em uma instância, passa por revisões em muitas instâncias. O terceiro cuidado é que aquele que conduz a negociação não seja permanentemente vinculado, que tenha uma certa reciclagem supervisionada das pessoas que negociam, para que você não crie uma situação de permanência ali de forma que o processo seja contaminado até por corrupção.

ConJur — Esse risco é mensurado?
Adams — Tem de ser controlado, mas não sei se chega a ser mensurado. Controlado de uma forma que, se ocorrer uma situação de corrupção, ela não contamine o modelo. O grande problema de haver uma situação de corrupção no processo judicial é que contamine o modelo. Aí você para de conciliar, e isso é muito ruim.

ConJur — O senhor chegou a mencionar que são 2,5 milhões de processos de execução fiscal em trâmite. São processos que a União ganha, mas não leva, não é?
Adams — É. A União tenta cobrar, mas não leva. Hoje isso chega a R$ 1 trilhão, 25% do PIB.

ConJur — Como se administra isso?
Adams — Boa pergunta. Eu tenho dois projetos parados no Congresso que tratam dessa questão, um da execução fiscal e outro para a transação. Esses projetos buscam dar uma solução para o modelo de cobrança, seja pulverizando, usando o sistema financeiro como auxiliar desses processos…

ConJur — Com bancos?
Adams — Com bancos. Seja permitindo ou admitindo a transação como uma solução efetiva para esses impasses, seja dando maior efetividade para a própria cobrança. Hoje o Brasil é um dos poucos países, se não o único país, que usa a execução judicial. Espanha, França, Alemanha, Itália, Chile, México, Estados Unidos… neses países a execução é essencialmente administrativa. O ato judicial é buscado para interromper o processo de cobrança, mas não transfere para o Judiciário a cobrança em si.

ConJur — Dá para fazer o contrário, transferir o processo judicial para o setor administrativo?
Adams — Legalmente, pode. A questão é a decisão de fazê-lo. Tem um projeto de lei nesse sentido, inclusive. Na minha proposta que está no Congresso hoje a execução continua judicial, mas transfere algumas etapas da execução para a fase administrativa. Notificação, penhora, isso passaria para a parte administrativa. Existe um estudo que foi recentemente divulgado pelo CNJ que diz que o tempo de citação judicial em uma execução fiscal é 80% do tempo do processo. O maior problema é achar as pessoas, porque elas mudam de endereço. O banco acha.

ConJur — Qual é o papel da AGU nessa questão da corrupção?
Adams A corrupção é um tema que é tratado com o cuidado que qualquer instituição de Estado tem de ter: de combatê-lo. O papel específico da AGU está focado na recuperação de ativos. Mas precisamos de algumas premissas, porque senão vamos ter um cabedal de ações inconsistentes.

ConJur — Que premissas?
Adams Primeiro é a necessidade de uma posição prévia de condenação por algum órgão da administração. Ou seja, que imponha administrativamente esse ressarcimento. Estou falando especificamente do Tribunal de Contas da União, ou algum processo administrativo de apuração no âmbito de cada ministério. Mas tem de ser um processo conclusivo que caracterize em definitivo aquele desvio. Se não tiver, há risco de a AGU se tornar um órgão acusador, porque eu posso atropelar o processo, pretendendo a recuperação de algo que ainda está sendo objeto de apuração e de julgamento.

ConJur — Isso vem daquela discussão se a AGU deve exercer a advocacia de Estado ou de governo, não?
Adams Não, não tem a ver com essa discussão. Essa entre advocacia de Estado ou de governo é outra discussão. A atuação da AGU na questão da corrupção é de interesse do governo porque interessa ao governo a recuperação desses ativos. É evidente. Não posso achar que existe uma contradição aí.

ConJur — Onde está a discussão entre advocacia de governo ou de Estado?
Adams Sempre fui muito crítico e preocupado com a atuação da nossa burocracia de Estado. Temos de ter cautela quando diferenciamos técnica e política porque essa diferenciação existe também para um propósito político.

ConJur — Pode explicar melhor?
Adams Costumamos achar que técnica é um processo de decisões pré-determinadas por padrões objetivos e não subjetivos. Mas na verdade o exercício da técnica é um exercício eminentemente e imanentemente subjetivo também. Ou seja, lida com padrões, com racionalidades, mas existem escolhas inerentes a qualquer escolha técnica. E se não se compreender que escolhas são feitas, de que forma e por que são feitas, acabamos eliminando a escolha do administrador e do governante. É uma simples constatação de que o governo é parte do Estado. Existe algum Estado sem governo?

ConJur — São papeis indissolúveis, então…
Adams Se não existe Estado sem governo, alguém que defende o Estado também defende o governo. Não se pode dizer “não tem problema nenhum defender a presidência do Supremo Tribunal Federal, mas tem problema defender a Presidência da República”. Eu nem falo nem em relação entre governo e Estado, falo em governo e burocracia.

ConJur — Não entendi.
Adams O que é o Estado? É uma expressão imaterial, que representa uma governança política que sustenta uma burocracia com competências próprias e que funciona dentro do Estado. A relação dessa burocracia com o governo é tensa, ou tensionada, porque a burocracia, por definição, conserva. Existe para conservar, é conservadora por definição. Já o governo vem para tensionar mudanças. Ninguém é eleito dizendo “por favor, me elejam para eu manter o status quo”.

ConJur — E no que isso se relaciona com a questão das escolhas?
Adams A escolha burocrática, que é uma escolha conservadora, tem de ser matizada pela escolha política da sociedade. A diferença é que o tempo da burocracia é diferente, porque alguém que ingressou no serviço público pensa o Estado daqui a 30 anos. O governo tem um espectro de ação de quatro anos. O tempo de resposta muda. Então essa dinâmica de relacionamento é uma dinâmica que no meu ponto de vista tem de prevalecer na expressão governamental decisória, que tem uma legitimidade democrática. A burocracia tem uma legitimidade que se sustenta pela técnica, mas essa técnica não responde aos anseios da sociedade. Essa técnica qualifica a solução política.

ConJur — Então não tem como separar a advocacia de Estado da de governo?
Adams Não. A AGU é um órgão que defende o Estado, que defende a administração pública como um todo, mas nessa defesa também defende o governo. E é parte do governo, da solução política. Ela qualifica as opções políticas. Mas o que acontece é que, muitas vezes, no exercício da competência técnica, se geram condicionantes e parâmetros que eliminam a escolha política. Então, na verdade, o que a AGU deve fazer com a técnica é potencializar a possibilidade de escolhas políticas e qualificá-las. Essa é uma discussão que deve ser feita no Brasil, porque temos hoje uma forte crítica à política, e essa crítica tem sobrevalorizado o espaço burocrático técnico, quando na verdade esse espaço técnico tem limitações muito sérias. Não podemos transformar a técnica em substituta da política. Se fizermos isso, vamos acabar com a democracia.

ConJur — Isso é a gênese do fascismo, não?
Adams Não vou usar essa referência. Eu acho o seguinte: a substituição da escolha política da sociedade e de suas representações por escolhas pré-determinadas por um estamento burocrático elimina escolhas feitas pela sociedade. Então a burocracia tem limite, sim. Ela é subordinada, sim. A burocracia faz política, sim.

ConJur — Em que sentido?
Adams Faz política sindical, tenta ganhar melhores salários, maiores competências, quer ganhar porte de arma, quer prestígio… Isso é política que se faz todos os dias. A gente vê isso nas greves, nas demandas internas. Esse discurso usual do “olha, eu arrecado tanto, eu gasto menos, então meu custo é menor do que o que eu arrecado”… desculpe, isso é uma apropriação indevida de competência, porque a arrecadação não é para mim. Eu não sou uma empresa que deu lucro, uma subsidiária integral, conversando com a matriz. O resultado da arrecadação não é para mim, é para a sociedade. Portanto, pretender apropriar isso pelo fato de exercer a minha competência adequadamente é uma apropriação política indevida. Minha competência não foi criada para mim, foi criada para a sociedade.

ConJur — E em todas as instâncias do poder.
Adams Claro. E isso é um problema, porque a burocracia gosta de comandar, mas ela presta serviço. É só entrar em um posto de atendimento e olhar aquela frase: “desacato à autoridade é crime.” Você já sai algemado: “Por que eu vou reclamar? Reclamar é crime!” O que deveria estar lá? “O gerente responsável é o Fulano de Tal, celular etc. Se não estiver sendo atendido, pode reclamar que vamos atender”. É isso que eu discuto: eu quero profissionalizar a burocracia, quero estabelecer uma competência necessária e gerar responsabilidade no exercício dessa função e no que ela representa.

ConJur — Essa discussão está sendo feita dentro da AGU?
Adams Eu tenho feito. Agora, quando você vê disputas, por exemplo, relativas à lei orgânica da AGU, disputas dessa natureza, você vê claramente esse tipo de discurso, vê esse tipo de prática: “Eu quero que todos os cargos de comissão sejam exercidos por advogados públicos”. “Por quê?” “Porque isso garante a independência técnica e a despolitização do órgão”. Ora, o Estado é um ente político. Se não for político, o que é? Então, se o Estado toma decisões políticas em nome do interesse da sociedade, mas o governo não está presente no comando dessa burocracia, a burocracia passa a comandar a si mesma. É essa a questão. Não tem nada a ver com a qualificação técnica dos ocupantes, tem a ver com quem faz as escolhas.

ConJur — Como avalia a advocacia pública hoje em comparação com os primórdios, há 15 ou 20 anos?
Adams Acredito que a instituição tem evoluído na sua vocação institucional em termos do que ela pretende ser para a sociedade. A instituição tem se vocacionado cada vez mais para a função de aconselhar o governo, Executivo, a administração pública ligada ao Poder Executivo, e defender essas políticas no Judiciário.

 

Nascido em Brasília em 10 de julho de 1971, formou-se em Direito no Uniceub em 1993. É pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Processo Civil. Conselheiro Seccional eleito por duas gestões 2004/2009, tendo presidido a Comissão de defesa e prerrogativas da OAB/DF. Vice-presidente da OAB/DF no período de 2008/2009. Ocupou o cargo de Secretário-Geral da Comissão Nacional de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB na gestão 2007/2010. Eleito Presidente da OAB/DF para o triênio 2013/2015, tendo recebido a maior votação da classe dos advogados no Distrito Federal com 7225 votos. É diretor do Conselho Federal da OAB na gestão 2016/2019, corregedor-geral da OAB e conselheiro federal pela OAB/DF.