Por Odasir Piacini Neto
O servidor que, de forma lícita, cumular dois cargos públicos, não deve sofrer a incidência do teto remuneratório sobre a soma das suas remunerações, mas sim sobre cada uma delas, isoladamente.
Em 20 de maio de 2014, o STJ, nos autos do RMS 30.880/CE, proferiu acórdão em que se entendeu que o teto constitucional deve incidir em separado sobre os proventos de aposentadoria e de pensão, por que são benefícios de origens diversas, vejamos a emenda do julgado:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – SERVIDOR APOSENTADO E BENEFICIÁRIO DE PENSÃO POR MORTE – TETO CONSTITUCIONAL – INCIDÊNCIA ISOLADA SOBRE CADA UMA DAS VERBAS – INTERPRETAÇÃO LÓGICO SISTEMÁTICA DA CONSTITUIÇÃO – CARÁTER CONTRIBUTIVO DO SISTEMA PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO – SEGURANÇA JURÍDICA – VEDAÇÃO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA – PRINCÍPIO DA IGUALDADE – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA PROVIDO.
1. Sendo legítima a acumulação de proventos de aposentadoria de servidor público com pensão por morte de cônjuge finado e também servidor público, o teto constitucional deve incidir isoladamente sobre cada uma destas verbas.
2. Inteligência lógico-sistemática da Constituição Federal.
3. Incidência dos princípios da segurança jurídica, da vedação do enriquecimento sem causa e da igualdade.
4. Recurso ordinário em mandado de segurança provido.
O precedente firmado pelo STJ, orientado por uma correta interpretação do artigo 37, inciso XI, da CF1, constitui importante conquista para os servidores públicos em geral, sendo certo que sua essência deve ser estendida às hipóteses de cumulação lícita de cargos públicos.
Assim como a CF autoriza a cumulação dos proventos de aposentadoria e de pensão, autoriza, igualmente, a cumulação de cargos públicos, nos termos do artigo 37, inciso XVI, sendo certo que, também igualmente, sobre a remuneração de ambos os cargos irá incidir a contribuição previdenciária, dado o caráter contributivo do sistema, vide artigo 402 da CF.
Nesse contexto, na linha do precedente adotado pelo STJ, o servidor que, de forma lícita, cumular dois cargos públicos, não deve sofrer a incidência do teto remuneratório sobre a soma das suas remunerações, mas sim sobre cada uma delas, isoladamente.
Entender de forma contrária levaria a um conflito aparente de normas, na medida em a Constituição ao passo que autorizaria a cumulação lícita de cargos públicos, retiraria a possibilidade de o servidor receber, integralmente, a contraprestação em virtude do serviço prestado, violando, por conseguinte, o princípio da irredutibilidade dos vencimentos (art. 7°, inciso VI CF/88), gerando inequívoco enriquecimento ilícito por parte do Estado.
O conflito, no entanto, mostra-se apenas aparente uma vez que adotada a interpretação lógico-sistemática, buscando-se a verdadeira intento legis da norma, não há como chegar-se a outra conclusão, a não ser àquela que entende que o teto constitucional deve incidir, isoladamente, sobre cada uma das remunerações auferidas pelo servidor, em virtude da cumulação lícita de cargos públicos.
Acerca do tema, merece especial destaque o entendimento do ministro do STF, Marco Aurélio, proferido no processo administrativo nº 319.269, litteris:
“Tenha-se em conta o conflito da cláusula ‘percebidos cumulativamente ou não’ inserida com a Emenda Constitucional n° 41/03, no que deu nova redação ao artigo 37, inciso XI, com o texto primitivo da Constituição Federal, cuja única razão de ser está ligada à menção a remuneração, subsídio, proventos, pensões e outras espécies remuneratórias. Admitida pela Lei Maior a acumulação, surge inconstitucional emenda que a inviabilize, e a tanto equivale restringir os valores remuneratórios dela resultantes. A previsão limitadora – ‘percebidos cumulativamente ou não’ – além de distanciar-se da razoável noção de teto, no que conduz a cotejo individualizado, fonte a fonte, conflita com a rigidez constitucional decorrente do artigo 60, § 4°, inciso IV, da Carta. Simplesmente o Estado não pode dar com uma das mãos e tirar com a outra; não pode assentar como admissível a acumulação e, na contramão desta, afastar a contrapartida que lhe é natural, quer no todo – quando, então, se passaria a ter prestação de serviço gratuito –, quer em parte, mitigando-se o que devido. Direitos e garantias individuais são aqueles previstos na Constituição, não cabendo distinguir posições, ou seja, integração passada, presente ou futura, em certa relação jurídica.”
No mesmo sentido, pede-se vênia para transcrever os ensinamentos de Luiz Alberto Gurgel:
No meu sentir, a EC 41/03 traz regras claras a serem aplicadas de imediato, extirpando as controvérsias acerca da inclusão das vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza no teto de remuneração. Não há, além do mais, que se falar em direito adquirido à exclusão de tais verbas, pois, conforme consignado, desde a época da redação original da Lei Maior, esse foi o desejo do constituinte e assim constava em seu texto, inclusive de forma explícita (art. 17, ADCT).
É importante consignar que não se está a defender a possibilidade de emenda constitucional violar direito adquirido, tema que já tive oportunidade de estudar e concluir em sentido diametralmente oposto, mas sim a manter a coerência com o posicionamento exposto desde o início deste trabalho, no sentido de que o teto de remuneração, desde a origem, abrange as vantagens pessoais.
Há, porém, um vício a ser corrigido na emenda 41/03, cuja gênese advém desde a EC 19/98: a previsão de que o teto se aplica às situações de cargos, empregos e funções percebidos cumulativamente.
Ora, se o constituinte permitiu a mencionada acumulação, em caráter excepcional, especificando, de forma taxativa, as poucas hipóteses em que a mesma pode ocorrer não se pode admitir que o reformador viesse a tolher tal direito, fazendo, do texto da Lei Maior, letra morta. Com efeito, tomando como exemplo Ministro do Supremo Tribunal Federal, tal autoridade jamais poderia se valer do permissivo contido no art. 95, parágrafo único, inciso l, CF, e exercer o cargo de magistério, sob pena de trabalhar de forma gratuita, o que, em regra, é vedado por lei.
Na verdade, a melhor interpretação é que o teto de remuneração se aplica às hipóteses de acumulação em caráter isolado, ou seja, cada cargo, emprego ou função, desde que legalmente exercidos, nos termos autorizados pela Constituição, não pode ultrapassar o limite ali fixado (in Fórum Administrativo – Direito Público – FA, ano 1, n. 1, março/2001. Belo Horizonte, Fórum, 2001) (grifei)
Merece especial ressalva, o fato de que esse não foi primeiro precedente do STJ nesse sentido3, destarte, é certo que a incidência isolada do teto constitucional sobre cada uma das remunerações do servidor recebidas em virtude de cumulação lícita de cargos públicos se mostra legitima e adequada com a melhor técnica de hermenêutica constitucional.
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1 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como li-mite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o sub-sídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tri-bunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;
2 Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
3 AgRg no AgRg no RMS 33100/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, j. 7/5/2013, DJe 15/5/2013; RMS 33.170/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Rel. p/ Acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Segunda Turma, j. 15/5/2012, DJe 7/8/2012; RMS 38.682/ES, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, j. 18/10/2012, DJe 5/11/2012.
*Odasir Piacini Neto é advogado do escritório Ibaneis Advocacia e Consultoria. Especialista em Direito Previdenciário.