Recentemente, o governo federal começou a cobrar despesas do INSS, bem como despesas com eleições anuladas em face dos responsáveis por atos ilícitos, utilizando-se de ações regressivas. Logo, é necessário ampliar essa iniciativa para o SUS (área de saúde pública).
O Sistema Único de Saúde foi criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis 8080/1990 e 8.142/1990, Leis Orgânicas da Saúde, com a finalidade de alterar a situação de desigualdade na assistência à Saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão.
Importante ressaltar que o SUS não é uma pessoa jurídica — como já foi interpretado ao se mandar citá-lo em petição inicial —, mas apenas um sistema que integra a União, os estados e os municípios em uma co-gestão. Mas há despesas, por exemplo, que são apenas municipais. Ou então, apenas federais, ou ainda, apenas estaduais, sendo a divisão de atribuições no SUS algo bem complexo e até confuso.
A priori, a Constituição Federal não assegurou a gratuidade dos serviços de saúde pública, o que somente veio a ser previsto no artigo 43 da Lei federal 8.080/1990, conforme textos a seguir:
a) Constituição Federal:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.
b) Lei 8080/2009:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.
Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social
Art. 43. A gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicos contratados, ressalvando-se as cláusulas dos contratos ou convênios estabelecidos com as entidades privadas.
Nesse aspecto, é importante diferenciar, brevemente, doença de ato ilícito. A doença é um caso de força maior que não depende da vontade do paciente (fato). Já o ato ilícito, em geral, decorreu de uma ação voluntária do agressor que gerou despesas no atendimento. Logo, o atendimento na saúde pública ao paciente deve ser gratuito, mas nada impede que posteriormente seja feita a cobrança pela via regressiva comprovada a ilicitude do ato.
Caso contrário, haveria uma irresponsabilidade social ao não se cobrar as despesas do infrator. O SUS é baseado na responsabilidade social e coletiva, sendo que um atendimento de vítima de acidente de trânsito com traumatismo grave, causado por motorista embriagado e dirigindo velocidade acima do permitido, custa em torno R$ 100 mil. Não faz o menor sentido o Estado não cobrar posteriormente o ressarcimento das despesas em desfavor do autor da ilicitude, cabendo ao Estado o ônus de provar a culpa por parte do infrator (responsabilidade subjetiva).
Neste sentido transcreve-se artigos do atual Código Civil:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.(conhecido como abuso de direito, destaque nosso).
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
No tocante ao SUS, não é apenas a AGU que teria que cobrar os valores, pois dependeria da esfera estatal que suportou o prejuízo.
De fato, prevalece o entendimento de que a gratuidade impede a cobrança das despesas em caso de ilícito, o que é equivocado, uma vez que o atendimento será gratuito, mas o dano decorrente do ato ilícito suportado pelo ente estatal e pela sociedade é que será cobrado posteriormente. É claro que se o responsável não tiver condições de arcar com as despesas, o trâmite será o natural de dívidas não pagas. Também é possível não identificar o causador do ato ilícito, como no caso de “bala perdida”. Portanto, o ressarcimento difere do conceito de gratuidade.
Por exemplo, no caso de atendimentos por coma alcoólico, normalmente a despesa fica no nível municipal. Em alguns países, a pessoa é atendida sem cobrança de valores, mas, depois, recebe a conta em sua casa, uma vez que não era caso de doença, mas ato voluntário de excesso de bebidas, como é comum em dias festivos e de Carnaval.
A ação regressiva difere da concepção de gratuidade, pois a cobrança é apenas posterior e depois de apurar ter sido decorrente de ato ilícito. Tem um efeito pedagógico importante ao inibir atividade ilícitas, pois a despesa será arcada pelo responsável e não pela coletividade.
Seria importante o Ministério da Saúde, em conjunto com os entes que integram o SUS, normatizar essa situação para orientar como proceder neste caso de ação regressiva, como fez o INSS através da Portaria 6, de 1º de fevereiro de 2013.
Em suma, a gratuidade não abarca os atos ilícitos. Com essa medida, os responsáveis por ações ou omissões voluntárias, decorrentes de negligência ou imprudência seriam cobrados posteriormente ao atendimento em ações administrativas ou judiciais para ressarcir as despesas no SUS. Isso, inclusive, deve ser discutido nos Conselhos de Saúde e até mesmo pelo Ministério Público, pois a cobrança deve ser feita pelo ente que suportou as despesas. Com isso teremos um SUS mais “saudável” com os autores do ilícito respondendo pelos seus atos.