É praticamente lugar comum, a quem se anima a analisar o funcionamento da Justiça, o problema da sua excessiva demora, para o que contribuiria o “excessivo número de recursos”. Não há como a demora deixar de ser proporcional à sobreposição de juízos a respeito do mesmo litígio. Porém, não é racional tentar eliminar o tempo do processo simplesmente descartando os recursos.
O real problema não está na sua existência, mas na mitificação do duplo grau de jurisdição, na não percepção de que o tempo do processo é um ônus – que, assim, deve ser distribuído mediante a execução na pendência da apelação – e na impossibilidade de a Corte incumbida de dar unidade ao direito federal cumprir com a sua missão.
O duplo grau não é garantia constitucional ou princípio fundamental de justiça. Na verdade, a suposição de que o duplo grau é algo imprescindível é que atenta contra os direitos fundamentais à tutela efetiva e tempestiva. Dois juízos repetitivos sobre o mérito, independentemente do litígio discutido, fazem do primeiro grau uma extenuante e inútil antessala, à espera do pronunciamento do tribunal – nesse sentido visto como única e verdadeira decisão.
Como é óbvio, não se propõe a eliminação da apelação, porém a sua restrição diante de casos simples – que envolvem particularmente questões de fato de menor complexidade -, como os relativos a indenização em virtude de acidente de trânsito ou a locação. Não é preciso dizer que isto cortará o tempo e o custo do processo pela metade e descongestionará os tribunais, hoje obrigados a contarem com excessivo número de assessores para darem conta da desumana e irracional carga de trabalho imposta aos desembargadores[1].
Para os casos em que a apelação não pode ser suprimida, basta considerar outro ponto que também não deveria gerar dúvida. É preciso perceber, de vez por todas, que o tempo não é algo neutro – como desejaram os doutrinadores do século XX -, mas um ônus, que assim deve ser distribuído entre os litigantes. Ora, se a sentença é um ato em princípio legítimo, que declara – após o devido contraditório – o direito, a supressão dos seus efeitos, até que o tribunal se pronuncie, é algo completamente destituído de boa lógica. Se o direito do autor foi declarado, após a participação das partes no procedimento de primeiro grau, o tempo do recurso deve ser suportado pelo demandado e não pelo demandante.
A suposição de que o tempo do recurso deve recair sobre as costas do autor apenas encontra racionalidade quando baseada na premissa de que o tempo do processo é um problema do demandante. Ou em outra, tão absurda quanto a primeira, de que a sentença do juiz de primeiro grau não merece credibilidade, devendo sempre ser vista com reservas.
A execução da sentença na pendência da apelação é algo insuprimível num sistema judicial marcado pelos direitos fundamentais à tutela efetiva e tempestiva. E, além disso, necessária para resgatar a dignidade das decisões do juiz de primeiro grau. Se a sentença não produz efeitos, se assemelha a um projeto de decisão, e o juiz que a profere, por consequência, assume a função de um instrutor. Além de usurpar o poder dos juízes e violentar os direitos fundamentais do jurisdicionado, isso desgasta a credibilidade do Judiciário perante a população. Assim, é chegado o momento de se ter execução na pendência da apelação, instituindo-se, ao seu lado, a possibilidade de se suspender os efeitos da sentença e de se exigir prestação de garantia, num verdadeiro sistema de pesos e contrapesos[2].
Por fim, cabe tratar da questão que hoje mais interessa, diante da recente proposta de introdução da técnica da “relevância da questão federal” no Superior Tribunal de Justiça. Para que a questão seja bem situada importa perguntar a razão pela qual uma Corte necessita de uma técnica de seleção de recursos.
Seria absurdo afirmar que é apenas para eliminar o excesso de trabalho do tribunal. A racionalização do trabalho judicial é uma consequência da adoção da técnica, mas evidentemente não está na sua essência. Esta técnica é utilizada quando se quer otimizar ou criar uma “Corte de Precedentes”, compreendida como corte que tem a função de desenvolver e transformar o direito mediante a instituição e a revogação de precedentes.
Uma “Corte de Precedentes”, ao exercer sua função de colaborar com a construção do direito, não pode se desligar do seu dever de tutelar a coerência do direito, a segurança jurídica e a igualdade perante as decisões judiciais. A Corte deixa, assim, de objetivar apenas a tutela do litigante mediante a correção da interpretação do direito e passa a estar consciente de sua missão de revelar o sentido do direito, bem como de sua responsabilidade perante o futuro.
A Corte tem função proativa, prevenindo agressões ao Direito e permitindo a sua evolução e transformação. Se o STJ tem a função de dar unidade ao direito federal mediante a instituição de precedentes, os seus ministros e turmas, assim como os tribunais inferiores, deles não podem divergir. O precedente pode ser revogado pela Corte quando presentes circunstâncias que assim aconselhem, tomando-se a cautela de não violar a confiança justificada dos jurisdicionados, mediante a atribuição, se for o caso, de efeitos prospectivos à decisão revogadora.
Por sua vez, os tribunais inferiores, diante do precedente, devem bem operar com a técnica da distinção (distinguishing), evitando aplicar o precedente em face de casos diversos. Tem-se, nesta dimensão, verdadeira unidade do direito federal, real dignidade das decisões da Corte, evitando-se a violação da segurança jurídica e da igualdade perante o direito. Como consequência, há tutela jurisdicional muito mais tempestiva e barata e maior chance de surgimento de acordos, evitando-se a litigiosidade diante da solução já expressa no precedente[3].
O STJ, a despeito da sua missão constitucional de dar unidade ao direito federal, hoje não tem condições adequadas para exercer funções proativas. Muitas vezes, por exercer função unicamente reativa, acaba assumindo a natureza de um terceiro grau de jurisdição. A técnica de seleção de recursos, voltada à individualização de questão jurídica relevante para a evolução e a transformação do direito, tem grande importância nas modernas Cortes Supremas, inclusive para que seus membros possam se dedicar às questões de real relevância. Além das supremas cortes norte-americana e inglesa, as cortes supremas da Alemanha e da Áustria utilizam tal técnica – ainda que de formas diferentes. Sabem estas Cortes que o emprego desta técnica nada tem a ver com diminuição de trabalho, mas com a necessidade de participarem do desenvolvimento do direito, assegurando a sua distribuição de modo isonômico.
É preciso que o sentido do direito federal tenha estabilidade e que os precedentes sejam criados e revogados apenas quando necessário em face da evolução da concepção geral do direito e da própria realidade social. Com isso a vida dos processos não ultrapassará, em regra, o segundo grau de jurisdição, priorizando-se a tempestividade da tutela jurisdicional, a economia de gastos financeiros e a racionalidade do serviço dos Tribunais e do próprio STJ, além de – e isto é mais importante – a coerência da ordem jurídica, a segurança e a igualdade perante o direito. Portanto, é muito importante a iniciativa do STJ, de proposta de emenda constitucional, dirigida a instituir técnica de seleção de recursos a partir do critério de “relevância da questão federal”.
Note-se que as três questões analisadas permitem o resgate do valor do juiz de primeiro grau, a racionalização da tarefa dos tribunais e que o STJ exerça a sua missão constitucional de dar unidade ao direito, estando todas intimamente relacionadas. São elas imprescindíveis para a racionalização do sistema judicial e para que o Poder Judiciário passe a exercer as funções que dele não podem ser subtraídas na contemporaneidade.
[1] Conforme proposta que fizemos em 1996, “Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença”, São Paulo, Ed. RT, 1996.
[2] Conforme proposta que fizemos em 1996, Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, São Paulo, Ed. RT, 1996.
[3] Ver Luiz Guilherme Marinoni, Precedentes Obrigatórios, São Paulo, Ed. RT, 2010, 2a. ed.