Indignação. Esse é o sentimento provocado pelo Parecer 202/2013, da Coordenadoria-Geral de Assuntos Tributários (CAT) da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), cujo conteúdo foi recentemente divulgado na imprensa especializada[1]. Indignação pela ousadia de se afirmar a existência de uma tributação sem lei que a estabeleça. E, o que é ainda muito pior, de se afirmar existir tributação quando a única lei que rege a matéria é categórica em prever uma isenção incondicional e irrestrita. Mas o estrago que tamanha ousadia provoca não se basta aí, caros leitores, pasmem: conseguiu-se rasgar um pacto institucional, firmado entre Executivo e Legislativo, de garantia de neutralidade fiscal. É a esse verdadeiro planejamento de “extorsão” tributária, urdido na sombra das repartições, que, indignados, dedicaremos a coluna de hoje.
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O Parecer/PGFN/CAT 202/2013 respaldou a Nota 16, de 17 de maio de 2012, da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), da Receita Federal, que “entende que para fins de distribuição de lucros e dividendos, prevista no artigo 10 da Lei n.º 9.249, de 26 de dezembro de 1995, pelas pessoas jurídicas sujeitas ao Regime Tributário de Transição (RTT) de que trata o art. 15 da Lei 11.941, de 27 de maio de 2009, são considerados isentos os lucros ou dividendos distribuídos até o montante do lucro fiscal apurado no período, ou seja, do lucro líquido apurado conforme os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007”.
A ideia central que permeia a nota da Cosit e o raciocínio do parecer 202 a que ela aderiu, sem críticas ou ressalvas do ponto de vista jurídico (o que é espantoso), é a seguinte: a partir da introdução do RTT passaram existir dois “lucros” distribuíveis: (i) o “lucro societário”, apurado de acordo com as regras contábeis da Lei 6.404/76 (Lei das S.A.), com as alterações introduzidas pelas Leis 11.638/07 e 11.941/09; e (ii) o “lucro fiscal”, equivalente ao “lucro societário” submetido à aplicação do RTT, ou seja, expurgado dos efeitos dos novos critérios de reconhecimento de receitas, custos e despesas vigentes a partir de 2008, que seguem os International Financial Reporting Standards (IFRS).[2]
O “lucro fiscal”, sujeito às adições, exclusões e compensações prescritas pela legislação tributária (consolidadas no Decreto 3.000/99 — regulamento do Imposto de Renda), é o lucro real, base de cálculo do imposto de renda das pessoas jurídicas.[3]
No entendimento da Cosit, encampado pelo parecer da PGFN, a não incidência de Imposto de Renda sobre lucros ou dividendos assegurada pelo artigo 10 da Lei 9.249/95 estaria limitada ao montante do “lucro fiscal”, não alcançando o chamado “lucro societário”.
Assim, por exemplo, se o “lucro fiscal” fosse 90 e o “lucro societário” 100, a isenção alcançaria apenas os 90. A diferença de 10 seria tributável, só não se sabe nas mãos de quem, a que título, sobre qual valor e a qual alíquota!
É isso que o Parecer propõe ao concluir “que o entendimento exarado na Nota Técnica 16 – Cosit, segundo o qual para fins de distribuição de lucros e dividendos, pelas pessoas jurídicas sujeitas ao Regime Tributário de Transição (RTT), de que trata o artigo 15 da Lei 11.941, de 2009, são considerados isentos os lucros ou dividendos distribuídos até o montante do lucro fiscal apurado no período, ou seja, do lucro líquido apurado conforme os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007, é o mais adequado ao caso de que trata”.
Diz-se que a tributação da diferença é o “entendimento (…) mais adequado ao caso de que trata”, mas não se elucidam quais os elementos essenciais do “novo” tributo incidente sobre tal diferença. Contribuinte, fato gerador, base de cálculo e alíquota — elementos nucleares dos tributos, submetidos por mandamento constitucional ao princípio da legalidade[4] —, permanecem ocultos, não são divulgados para os cidadãos pela “nova” fonte normativa: um parecer da PGFN que respalda nota técnica da Cosit!
Como já ensinava Alberto Xavier no clássico Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação:
O princípio da legalidade tributária, nos quadros do Estado de Direito, é essencialmente um critério de realização de justiça; mas não é, do mesmo passo, um critério de sua realização em termos seguros e certos. A ideia de segurança jurídica é, decerto, bem mais vasta do que a legalidade; mas posta em contato com esta não pode deixar de a modelar, de lhe imprimir um conteúdo, que há de necessariamente revelar o grau de segurança ou certeza imposto, ou pelas concepções dominantes, ou pelas peculiaridades do setor a que respeita. Ora, o Direito Tributário é de todos os ramos do Direito aquele em que a segurança jurídica assume a sua maior intensidade possível e é por isso que nele o princípio da legalidade se configura como uma reserva absoluta de lei formal.[5]
A exigência de um reserva de lei formal como expressão da segurança jurídica no seu duplo conteúdo é explicada com clareza e erudição pelo professor:
Sem embargo de se denotarem neste campo algumas imprecisões terminológicas, pode dizer-se que a doutrina dominante — especialmente a alemã – tende a ver a essência da segurança jurídica na suscetibilidade de previsão objetiva, por parte dos particulares, das suas situações jurídicas (Vorhersehbarkeit e Vorausberenchenbarkeit), de tal modo que estes possam ter uma expectativa precisa dos seus direitos e deveres, dos benefícios que lhe são concedidos ou dos encargos que hajam de suportar. Daqui resulta que a ideia geral de segurança jurídica se analise – como observam Löhlein e Jaenke – num conteúdo formal, que é a estabilidade do Direito e num conteúdo material, que consiste na chamada “proteção da confiança” (Vertrauensschutz).
Precisamente o conceito de “proteção da confiança” assume no Direito Tributário uma larga projeção. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional proclamou mesmo ser um imperativo constitucional de qualquer Estado de Direito aquilo que chamou o “princípio da proteção da confiança na lei fiscal” (Vertrauengrundstatz bei Steuergesetzen; Verlüssichkeit des Gesetzes) e segundo o qual as leis tributárias devem ser elaboradas de tal modo que garantam ao cidadão a confiança de que lhe facultam um quadro completo de quais as suas ações ou condutas originadoras de encargos fiscais. Como bem observa Bachmayr, o princípio da confiança na lei fiscal, como imposição do princípio constitucional da segurança j
urídica, traduz-se praticamente na possibilidade dada ao contribuinte de conhecer e computar os seus encargos tributários com base direta e exclusivamente na lei.[6]
Parafraseando Ítalo Calvino, é por isso que os clássicos devem ser lidos. Para aprender que o Estado de Direito alicerça-se na segurança jurídica e na previsibilidade da ação estatal e que, por isso e para isso, os tributos estão submetidos a uma reserva absoluta de lei formal. É absolutamente intolerável e inadmissível a pretensão de tributar sem lei, com base em entendimento de parecer da PGFN e/ou de nota técnica da Cosit. Nunca é demais repetir o velho brocardo: Nullum tributum sine praevia lege.
Ora, o artigo 10 da Lei 9.249/95 não contém qualquer ressalva ou condição para a isenção: “os lucros ou dividendos calculados com base em resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior”.
De nossa parte, bastaria a constatação da (i) inexistência de uma lei prevendo a tributação de uma eventual diferença ente “lucro societário” e “lucro fiscal” e (ii) existência de uma lei expressamente prevendo a isenção, sem ressalvas ou condições, para dar por encerrada a discussão. Não deixaremos, porém, de tecer considerações sobre a questão em face de argumentos que se amparam numa suposta “vontade do legislador”.
Com efeito, para defender a tributação sem lei que a estabeleça, o Parecer 202 recorre à sua interpretação daquilo que viria a ser a “vontade do legislador”. Como o motivo da isenção do artigo 10 da Lei 9.249/95 está em evitar-se uma dupla ou plúrima tributação econômica do mesmo lucro nas mãos da pessoa jurídica que os gerou e de seus sócios na cadeia ascendente de participações[7],não poderia haver distribuição isenta de parcelas do lucro que não tenham sido ainda tributadas, em virtude do RTT, ao nível das pessoas jurídicas que originariamente os geraram.
Ocorre que mesmo nas regras anteriores ao RTT, o lucro tributável (lucro real) nunca coincidiu com o lucro contábil-societário, apurado de acordo com a Lei 6.404/76. Como bem observa Jimir Doniak Jr., “(…) não foram as novas normas contábeis, derivadas do IFRS, as responsáveis por originar uma diferença entre o lucro societário e contábil de um lado, e o lucro tributável de outro. Essa diferença sempre existiu, o que não impediu o legislador de aprovar a isenção na distribuição do lucro societário/contábil. As novas normas contábeis apenas aprofundaram a distância entre os dois tipos de lucro.”[8]
Também não cabe perquirir agora, 18 anos depois, qual teria sido o tratamento dado pelo legislador que criou a isenção diante dos efeitos do RTT. Como ensina o mesmo autor, “(…) ao ser aprovada, a norma desprende-se do legislador e passa a ser aplicada inclusive em situações não previstas por ele. Improcede, assim, argumentar que o legislador talvez não concedesse a isenção para lucros e dividendos quando eles passam a distanciar-se sobremaneira do lucro tributável”.[9]
Acresce, por fim, que o entendimento acolhido pelo Parecer 202 tem o significado de uma ruptura de pacto institucional firmado entre dois Poderes da República em benefício dos contribuintes.
Como se sabe, a adoção dos IFRS conduziu à mudança de certos critérios de reconhecimento de receitas, custos e despesas e da avaliação de ativos e passivos, cuja complexidade técnica escapa os limites dessa coluna. Em síntese pode-se dizer, entretanto, que são medidas de proteção dirigidas aos acionistas-investidores visando proporcionar-lhes um “retrato” mais fidedigno da realidade econômica das empresas investidas.
A aprovação das novas regras legais foi condicionada pelo Congresso Nacional à sua neutralidade fiscal, já que muitas delas significavam a antecipação do reconhecimento de receitas e a contabilização de ativos a valores de mercado.
O Congresso exigiu, em nome da segurança jurídica (vejam só!), que não houvesse aumento da carga tributária, daí a criação do RTT e o compromisso de que a nova lei que vier a ser editada regulando os efeitos fiscais pós-RTT consagrará igualmente a neutralidade fiscal.[10]
A aplicação do RTT veio, assim, evitar uma tributação antecipada, mas, jamais, se propôs sua eliminação total e absoluta, já que a mesma seguirá existindo, apenas diferida, quando realizada de acordo com os critérios pretéritos.
Assim, exigir que a parcela do “lucro societário”, não tributada por força do RTT, eventualmente distribuída, seja desde já tributada, significa romper com a neutralidade fiscal e provocar uma dupla tributação do mesmo lucro: agora, por ocasião da distribuição do dito “excesso”, e no futuro, por ocasião da efetiva realização dessa parcela segundo as normas anteriormente vigentes.
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Não se pode conceber uma tributação instituída por atos internos interpretativos da administração fiscal. Não há segurança jurídica que resista a planejamentos de “extorsão” tributária urdidos na sombra das repartições. Em que mais poderá o cidadão confiar?
A neutralidade fiscal foi uma condição sine qua non imposta pelo Congresso Nacional para a aprovação das novas regras contábeis. A pretensão do Parecer 202 equivale a um “golpe de Estado”: anula o compromisso assumido pelo Executivo com o Legislativo, ao tributar aquilo que deveria ser fiscalmente neutro e que não deixará (nem deixaria) de ser tributado no futuro, à medida de sua efetiva realização. Só nos resta indignação com tamanha brutalidade contra o Estado de Direito.
ntroduzidos pela Lei n.º 11.638, de 28 de dezembro de 2007, para assim atingir o que denominamos como “lucro societário”; b) em um segundo momento, devem ser realizados ajustes específicos ao lucro líquido do período obtido conforme o item ‘a’, de modo a reverter o efeito da utilização dos novos métodos e critérios contábeis, encontrando, assim, a pessoa jurídica sujeita ao RTT o denominado “lucro fiscal” (ou, de forma mais exata, o resultado contábil considerando os métodos e critérios preconizados pela Lei n.º 6.404, de 1976, vigente em 31 de dezembro de 2007); c) finalmente, de modo a obter o lucro real, devem, em uma terceira etapa, ser realizados os demais ajustes de adição, exclusão e compensação previstos na legislação tributária”.
in Revista Dialética de Direito Tributário n. 200, p. 31 ss.