Prestes a completar 80 anos, Modesto Carvalhosa é um clássico do Direito. É presença obrigatória em qualquer lista dos grandes nomes da advocacia brasileira. Seu livro Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, em quatro volumes, milhares de páginas e já chegando à casa da dezena de edições, é obra de referência na matéria.
Mas Carvalhosa participou da redação de outros livros que o tornam ainda mais singular. Nos anos 70, em plena ditadura militar, eleito presidente da Associação dos Docentes da USP, ele encabeçou a publicação do Livro Negro da USP, em que denunciava as malfeitorias que os aliados do regime perpetravam na mais importante universidade do país. Anos mais tarde, produziu outro livro negro, o da corrupção, em que denunciava a farra com dinheiro público no escândalo que ficou conhecido como o dos Anões do Orçamento. Lamenta apenas que as conclusões e sugestões desse trabalho de faxina tenham sido menosprezadas e deixadas de lado pelo governo.
Com intensa atuação política, apesar de nunca ter se filiado a partido e de não se alinhar com nenhuma corrente ideológica, praticou no Brasil a resistência cívica como a forma mais eficaz para enfrentar a ditadura. Numa época em que qualquer crítica aos detentores do poder era terminantemente proibida, ele mobilizou a sociedade em torno de uma causa civil, aparentemente inofensiva como a preservação do tradicional Colégio Caetano de Campos, no centro de São Paulo. Mas hoje ele reconhece, esse movimento foi uma das primeiras ofensivas da sociedade capazes de abalar a solidez do regime.
Modesto também no modo de ser, diz que o que aconteceu na sua vida é obra do acaso. “Nada foi planejado, como acontece na vida da maioria das pessoas”. Mas orgulha-se de tudo que fez. “O que eu sei é que alguns livros que escrevi são clássicos e são lidos por gerações e gerações”, diz. E faria tudo de novo, se tivesse de recomeçar.
Leia a entrevista:
ConJur — Às vésperas dos 80 anos, se o senhor tivesse a chance de recomeçar, mudaria alguma coisa?
Modesto Carvalhosa — Não, porque eu tive muita sorte na vida, do ponto de vista institucional. Então, eu escrevi alguns livros, que são livros clássicos.
ConJur — Quantos livros?
Modesto Carvalhosa — Eu não sei, mais de dez. O que interessa é que tem alguns livros meus que são clássicos, e sendo livro clássico, é usado por todas as gerações, os advogados que já estão velhos, os que são jovens, e os estudantes. Eu tenho milhares de alunos, que se consideram meus alunos, porque leem os livros. Leem porque são muito fáceis. Eles aprendem no livro. E tudo isso por acaso, porque quando eu fiz esse meu livro não tinha nem intenção de ser uma obra clássica.[Comentários à Lei de Sociedades Anônimas]
ConJur — Quando surgiu a sua predileção pelo Direito Comercial?
Modesto Carvalhosa — Eu trabalhei no escritório do Benedito Patti como estagiário. Ele tinha um escritório muito próspero em São Paulo, e o meu sogro, que era cliente dele, indicou-me para ser estagiário lá. Eu entrei como estagiário e vi que era um escritório sempre ligado ao Direito Empresarial e Societário.
ConJur – Ele foi pioneiro nesse setor?
Modesto Carvalhosa – O Patti, junto com outros jovens da época, dos anos 50, tinham sido alunos do Túlio Ascarelli. O Ascarelli fazia reuniões na Rua Suécia, na casa dele, que eram reuniões e seminários desses jovens advogados. E ensinou a todos eles como era o Direito Comercial, o Direito Societário. Eram discípulos diretos do Ascarelli. O Patti, que está vivo até hoje, é um homem muito inteligente, brilhante, filho de Francisco Patti, aquele que sucedeu o Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo. Esse escritório era moderníssimo sob o ponto de vista de concepções, métodos e contratos, por causa sempre do Ascarelli. Eu fui lá e trabalhei como estagiário e depois como jovem advogado, formado. Eu ganhava uma miséria, mas fiquei lá uns bons anos.
ConJur — E quando foi isso?
Modesto Carvalhosa — Nos anos 50. De 55 em diante.
ConJur — Como era advogar e como funcionava a Justiça naquela época?
Modesto Carvalhosa — Era uma época de transição, porque até os anos 1950 os advogados tinham pequenos escritórios e os grandes advogados tinham grande nome pessoal. Então, não havia organização nos escritórios, havia o nome. Não havia sociedade de advogados, havia grandes advogados com os seus auxiliares. Eles batiam na máquina, em uma simplicidade, todos eles ali na Rua João Brícola, naquela área ali da Faculdade de Direito, os fóruns eram ali, tudo era concentrado ali, no Centro de São Paulo. E eram grandes nomes. Por volta de 1950, depois da guerra, começaram a ser introduzidos escritórios mais organizados. Tipo o Patti, que era um escritório pequeno, mas organizado. Daí veio o Demarest e Almeida, que organizou o escritório à moda americana.
ConJur — E a Justiça?
Modesto Carvalhosa — A Justiça era muito palpável. Em 1950 e poucos, eram 33 desembargadores, e se conhecia cada um deles. Eles eram absolutamente conhecidos do ambiente judiciário e advocatício em todos os seus hábitos, em todas as suas manias. Eram pessoas absolutamente íntegras. Eu trabalhei no Tribunal de Justiça de São Paulo enquanto estudante. Então, eu conhecia todos os 33 desembargadores. A Justiça funcionava muito bem.
ConJur — Muito diferente de hoje em dia?
Modesto Carvalhosa — Valia a simplicidade. Era um mundo que não era consumista, então isso refletia nos juízes. Era um judiciário muito adequado para as demandas. Eu nunca ouvi falar de atraso no Judiciário dos anos 50. Havia questões que demoravam anos, questões internas, questões de confrontação, questões de inventário. Sempre houve processos que se prolongaram décadas, mas pela própria natureza do processo.
ConJur — A inserção do Judiciário no cotidiano da sociedade é maior hoje do que naquela época?
Modesto Carvalhosa — Hoje você tem uma sociedade muito mais sofisticada, muito mais complexa. A sociedade civil brasileira se desenvolveu muito nos últimos 60 anos. Hoje a demanda de questões judiciais é muito maior. Na Justiça estadual de São Paulo existem 20 milhões de processos em andamento. 20 milhões de processos! Um problema é o Estado, que não pode transigir, não pode negociar, leva tudo para o poder Judiciário. Questões que o Estado poderia negociar claramente, têm que ser tocadas até o fim por questão de procedimento administrativo. Daí a razão do instituto da arbitragem, que agora vai fazer 15 anos. E tem outras ideias também: a idéia do CNJ, a conciliação, e também o desenvolvimento de uma coisa que o Tribunal de Justiça tenta há uns 10 anos ou mais, que é a mediação. O Poder Judicial, sobretudo o STJ, tem se manifestado claramente a favor da arbitragem e da solução arbitral, e incentiva para que isso ocorra.
ConJur — Como o senhor analisa o papel da imprensa e sua influência sobre o Judiciário?
Modesto Carvalhosa — A tendência é que os Tribunais Superiores não julgam contra a opinião pública. É o caso típico da questão em que os magistrados, através da AMB, querem tirar do CNJ a competência para abrir inquéritos contra juízes e desembargadores. Essa é a coisa mais inacreditável que se pode imaginar. E daí a opinião pública foi lá, através sempre dos jornais, e se manifestou 100% a favor do CNJ, contra essa medida. O Supremo Tribunal Federal já retirou de pauta. Então, isso é uma tendência sobretudo do Supremo, que trata das causas mais importantes do país, no sentido da sua repercussão geral. Ele não vota hoje em dia contra a opinião pública. Isso vale para o bem e para o mal.
ConJur — O senhor, então, defende os atuais poderes do CNJ. Não acha que o julgamento de casos pontuais pode atrapalhar uma reforma estratégica do Judiciário?
Modesto Carvalhosa — Posso dizer o seguinte: a polícia tem belo aparato técnico, tem inteligência, tem tecnologia. Ela resolve o problema criminal? Não. A estatística dos homicídios, dos furtos, dos assaltos, continuam iguais. A pena de morte resolve? Não. Então, a criminalidade é uma coisa que tem que ser combatida pelo temor do resultado da criminalidade. Então, por exemplo, se você é juiz, desembargador, ministro, e tem medo de ser processado pelo CNJ, você se inibe. A presença do CNJ é inibitória, embora o resultado sejam inquéritos pequenos, sob o ponto de vista numérico, e não são resultados brilhantes. Porém você tem uma inibição. O CNJ é uma coisa que todo mundo tem horror de aparecer, mesmo que seja no inquérito. Se abriu um inquérito é porque o sujeito realmente foi pilhado. Então, o aspecto inibitório do Estado tem uma função não de eficiência apenas, mas de inibição, ele tem que ser inibitório. Existe a polícia, portanto eu não vou matar ninguém. Então, para as pessoas que não são de uma mentalidade criminosa, elas se inibem da tentação de cometer crime.
ConJur – Tem funcionado?
Modesto Carvalhosa – O CNJ tem esse valor inibitório, embora o resultado não seja para titulo nenhum. Porque o CNJ, quando condena um juiz, um bandido de toga, ele simplesmente faz como na Grécia antiga: condena alguém ao ostracismo. Se o juiz comete um crime é condenado ao ostracismo, à aposentadoria compulsória. É muito interessante essa volta ancestral das penalidades que os patrícios faziam entre eles, e os gregos também, os cidadãos. Então, eu acho que está muito bem. É um bom caminho. O CNJ tem que continuar como está.
ConJur – Voltando de novo no tempo, como se deu a escolha pelo Direito?
Modesto Caravalhosa – Eu sou de família de professores. Meu pai era professor de liteeratura inglesa no ginásio público estadual. Minha mãe era professora de curso primário. O meu imaginário como adulto sempre foi ligado à carreira de professor. Eu queria ser professor. E por uma série de circunstâncias eu acabei sendo professor da Faculdade de Direito da USP, porque eu tinha sido um aluno razoável. E quando o Luiz Eulálio Vidigal virou diretor da faculdade de Direito, chamou uma série de alunos que achava interessantes para fazer doutorado.
ConJur – E como veio a escolha do Direito como profissão, a advocacia?
Modesto Carvalhosa — Sempre são os modelos. As pessoas vivem de modelos. Elas acham que elas têm um grande discernimento no que elas escolhem, mas estão sempre nos modelos. E o modelo para mim era um tio meu, o desembargador Modesto Carvalhosa. Tinha o mesmo nome. Era um grande advogado de São Paulo na época. Tinha sido desembargador e era presidente da Fundação Zerrenner, que é a dona da Antártica. Para mim, era o exemplo de um grande advogado, e como todo grande advogado da época, batia a máquina suas próprias petições. Então, eu fiquei muito tentado pela ideia de ser advogado, mesmo porque eu tenho o mesmo nome dele, que era um nome de família. Esse foi um modelo para mim. Ser professor foi o modelo do meu pai e da minha mãe. Ser advogado foi modelo do meu tio. Sempre a coisa freudiana do modelo.
ConJur — O senhor teve uma atuação importante contra a ditadura, nos anos 1970, na USP. Nunca se alinhou à política partidária?
Modesto Carvalhosa — Não. Eu não pertencia a partido nenhum, nem de esquerda, nem de direita, nem de meio, nem de nada. Eu nunca participei de partido nenhum. O único partido meu é o Corinthians e já chega. É uma verdadeira maldição. Chega de partido. Então, eu nunca fui de partido nenhum e nem de ideologia nenhuma. Eu era contra o regime militar, o que era normal para a minha geração. Praticamente todos os meus amigos eram contra. Também isso não era grande novidade.
ConJur — Mas na USP havia pessoas que apreciavam bastante o regime…
Modesto Carvalhosa — Nossa Senhora! Fascistas absolutos, dedos duros, uma coisa horrorosa! Mas os meus amigos todos eram contra o regime militar. E daí nós descobrimos, em um seminário que houve na Faculdade de Filosofia na época, que um meio de combater o regime militar era fazer lutas civis. Porque se você fizesse uma luta frontal política contra o regime militar, você teria todo um aparato, todo um aparelhamento do Estado para segurar você, reprimir você, prender você, torturar, matar etc. e tal. O regime já estava preparado para realmente eliminar, fisicamente ou não, qualquer luta de caráter político que se desse contra ele. Sobretudo nos anos de ferro, que foram de 68 até meados dos anos 70, com Geisel. A ideia, portanto, é que nesse seminário de Filosofia, que foi feito em 75 ou 74, se notou isso: que realmente para afrontar o regime militar é melhor conclamar a população, a sociedade civil, em questões civis.
ConJur — E como era essa resistência civil?
Modesto Carvalhosa — Por exemplo, daí eu vou descer a um fato gozado, que foi o negócio do Caetano de Campos.
ConJur — O colégio na Praça da República?
Modesto Carvalhosa — O Colégio Caetano de Campos. Tinha um prefeito, que era o Olavo Setúbal, que era banqueiro. Um homem competentíssimo. Depois tinha o Paulo Egídio como governador, que era um engenheirão, bela competência também. E depois tinha aquele tal de Plínio Assman e tinha o secretário da Educação, que é o tal de José Bonifácio. Esses atores resolveram decretar a demolição da escola Caetano de Campos para fazer lá uma grande estação do metrô, entendeu? Seria uma grande estação, que no final acabou sendo a da Praça da Sé, e eles queriam fazer lá.
ConJur – E o que aconteceu?
Modesto Carvalhosa – Era o momento da resistência da sociedade civil. O útil com o agradável. Como eu tinha sido ex-aluno e adorava a escola, peguei meus colegas todos que também adoravam a escola, e fizemos um baderna total, com a imprensa inteiramente a nosso favor. Então, a imprensa publicava na primeira página: “Caetano de Campos com resistência.” Entramos com uma Ação Popular, depois um Mandado de Segurança, fazíamos passeata, declarações bombásticas no jornal falando umas barbaridades, que aquilo era um golpe imobiliário, que o José Bonifácio tinha um edifício e ia fazer lá um grande shopping center. Tudo mentira. Mas foi um escândalo no noticiário. Irresponsabilidade de declarações absoluta. Mas o que era aquilo? Era uma luta civil. Uma luta da sociedade para manutenção de um patrimônio histórico. O regime militar não estava preparado para contestar e nem reprimir os manifestantes, e nem para censurar a imprensa. Como é que ele ia censurar a imprensa quando o povo quer a manutenção de uma escola? É difícil. Eles mostravam que o regime militar não estava preparado para isso. Então, a tese da Faculdade de Filosofia já estava ali. Hoje ninguém lembra de nada, mas foi um movimento da cidade inteira.
ConJur — Foi aí que o senhor se tornou presidente da Adusp [Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo]?
Modesto Carvalhosa — O tema do seminário era: “Meios de combater o regime militar.” E o meio de combater o regime militar era trazer para o público questões civis e não questões políticas. Daí o que aconteceu? Como nós tínhamos esse grupo que era o Antônio Cândido, o Luís Carlos Menezes, a Eunice Durham, aquela turma, eles falaram: “Você é o ideal para ser o presidente da Adusp. Você é doido, fala barbaridades, e tem a consciência de como a gente pode entrar nisso”. Daí eu fui eleito por uma campanha já muito politizada.
ConJur — Qual era o grupo político?
Modesto Carvalhosa — Era um grupo que depois cindiu entre o PT e o PMDB. Era um grupo de, vamos dizer, de esquerda, que depois de 1980 se cindiu nessas duas vertentes. Então, daí eu fiquei presidente da Adusp, já com a consciência que o meu grupo todo tinha, de que nós tínhamos que arranjar motivos para suscitar grandes movimentos populares, entendeu?
ConJur – Foi quando surgiu o projeto do Livro Negro?
Modesto Carvalhosa – Nós peitávamos o reitor da USP, que era um homem muito educado, e afrontávamos o aparato policial que tinha lá dentro, aquela coisa de denúncia, espionagem etc. e tal. E resolvemos também fazer uma brincadeira muito violenta que era o Livro Negro da USP, mostrando exatamente todas as canalhices que foram feitas pela revolução, por conta da revolução e que aproveitavam a revolução para perseguição de todos os professores que não eram personae grataedaqueles que comandavam as unidades da universidade [O golpe militar de 1964 era chamado de Revolução pelos homens do regime]. Então, se você tinha um desafeto, que não tinha nenhuma militância política, ele era denunciado e era cassado. Aproveitava e cassava o sujeito que não tinha nada com política. Os dedos duros, então, aproveitaram a revolução para se vingar dos inimigos. Tudo isso está no Livro Negro da USP, que é um monumento de denuncia.
ConJur — Qual a consequência do Livro Negro?
Modesto Carvalhosa — Um abalo geral, porque denunciava inclusive a estrutura vigente, que mandava lá dentro. Foi uma bomba o Livro Negro, porque era um assunto corporativo da USP falando das perseguições, nas diversas etapas, das facetas que teve.
ConJur — Isso foi pré-Lei da Anistia [Lei 6.683/1979 que reintegrou os condenados por crimes políticos cometidos entre 1961 e 1979]. De certa forma deve ter levado, acelerado ou ajudado a questão de todo o movimento…
Modesto Carvalhosa — Aí você falou uma coisa muito importante. Já estava germinando a questão da Anistia, então foi um elemento para mostrar a perseguição. Foi muito ligado à Anistia. Muito mesmo. A bandeira da anistia foi até 1979. Isso foi em 78. Daí o que aconteceu? Nós resolvemos fazer uma greve geral do funcionalismo público estadual. Nunca tinha havido uma greve geral. Exatamente no mesmo momento que os metalúrgicos estavam fazendo a greve em São Bernardo.
ConJur — Quando foi isso?
Modesto Carvalhosa — Começo de 1979. Então, enquanto estavam fazendo a greve em São Bernardo, nós estávamos fazendo uma greve totalmente separada. Nunca houve união nenhuma e nem movimentação conjunta, porque uma tinha origem operária [a de São Bernardo] e a outra tinha origem pequeno-burguesa. Conseguimos movimentar, arregimentar, em todos os setores do funcionalismo público, uma greve geral de reivindicação salarial. Que não era nada de salarial. Era um forma de afrontar o regime paralisando totalmente o serviço público. E o governador de São Paulo, para nossa sorte era o Paulo Maluf, e daí então nós tínhamos dois elementos inimigos, que realmente eram fáceis de argumentar contra, que eram o regime militar e o regime do Maluf, que era odiado pelo estado de São Paulo inteiro.
ConJur – O que essa greve conseguiu?
Modesto Carvalhosa – Nós movimentamos uma greve geral do funcionalismo público para reivindicar salário. Mentira, salário nenhum. Só para agitar. E foi uma agitação que durou várias semanas. E foi um movimento também que abalou muito a autoridade do regime militar. Teve a greve dos operários de São Bernardo e a greve do funcionalismo público daqui [de São Paulo]. Ali já havia sinais bem claros de decadência dos militares. Faltava autoridade e o pessoal não tinha tanto medo mais. Então, fizemos esse tipo de atividade da Adusp, que foi uma coisa extraordinária de liderar. Criamos, com isso, com o exemplo nosso, associações de docentes no Brasil inteiro. Pode ver que todos vieram daí, aprenderam, e fizeram suas livre docências. E a participação nossa na Anistia também, na formulação da anistia, que foi uma negociação muito difícil e muito complicada.
ConJur — O senhor participou dessa negociação? Como foi a negociação da anistia?
Modesto Carvalhosa — A negociação da anistia era feita no Sedes Sapientiae, ali em Perdizes. Nós fizemos reuniões diárias lá dentro, e levavam as propostas para o regime militar.
ConJur – Conte um pouco sobre o Livro Negro da Corrupção. Como foi feito este livro negro?
Modesto Carvalhosa — O Livro Negro da Corrupção é o seguinte: houve o tal do escândalo dos Anões do Orçamento e do Sarney [final dos anos 1980]. Descobriram que havia um negócio de apropriação do Orçamento. Eram bandidos que se apropriavam dos valores que estavam no Orçamentos. E chama-se Anões do Orámento porque tinha um lá que era pequeno, que era chamado de anão. Então, o que fez o Itamar [Franco, ex-presidente]? Ele era um homem correto, honesto, simples, e daí ele mandou pegar umas pessoas da sociedade civil para fazer uma comissão dentro do Palácio do Planalto para verificar as ramificações da gangue que havia no Congresso, dentro dos ministérios, e nomeou uma série de pessoas para isso. Nós trabalhamos durante um ano inteiro no Palácio do Planalto para verificar onde é que estava a corrupção dentro dos ministérios decorrente dessa gangue do orçamento.
ConJur – E aí nasceu o Livro?
Modesto Carvalhosa – Esse trabalho foi maravilhoso, chegou a conclusões estarrecedoras, inacreditáveis. Foi um trabalho esplêndido, de graça, ninguém cobrou nada. Trabalhamos um ano para o governo de graça. E daí enfim houve esse Livro Negro da Corrupção. E essa comissão que fez o livro e as conclusões, que eram terríveis, para providência do governo, só que o governo do Itamar estava acabando. Havia sugestões e soluções. Daí surgiu o Código de Ética do funcionalismo que nós fizemos.
ConJur – O que aconteceu depois disso tudo?
Modesto Carvalhosa – O Itamar entregou ao Fernando Henrique a conclusão do trabalho, as sugestões, as leis que deveriam ser feitas, a estruturação do ministério. Um trabalho primoroso. O Fernando Henrique recebeu e o primeiro ato foi revogar a comissão. “Está extinta a Comissão Especial de Investigação do Governo.” E não mandou nenhuma carta de agradecimento, nenhuma condecoração, nada. Extinto. Aí não fez nada e revogou o Código de Ética. Tinha sido feito um Código de Ética estilo americano: se você ganhar um objeto que seja de mais de US$ 100, é do Estado. Tudo bobagem. De tão importante que foi, o livro ganhou o Prêmio Jabut.
ConJur — Professor, o senhor está se aproximando do seu octogésimo aniversário. Imaginava que fosse chegar um dia em que o primeiro mundo estaria no estado em que está e o Brasil se tornando até mesmo alvo de interesse dos grandes escritórios dos Estados Unidos e da Europa,que querem se instalar aqui?
Modesto Carvalhosa — Não, eu não imaginava. Quando eu era jovem sempre teve aquela coisa do culto da não autoestima. O brasileiro se considerava absolutamente um lixo — ele próprio e a nação brasileira. O brasileiro é vagabundo, o brasileiro não tem caráter, o país é um horror, as instituições são horríveis, os serviços não existem: era isso.
ConJur — O “complexo do vira-lata”…
Modesto Carvalhosa — Exatamente. O Brasil tinha o “complexo do vira-lata”. Então, eu nunca imaginei realmente que o Brasil pudesse se tornar um potencia econômica. Nunca. Isso é uma surpresa.
ConJur — A que o senhor atribui essa mudança de status?
Modesto Carvalhosa — Eu atribuo a vários fatores. Primeiro o fator da globalização. Segundo a criação de centros, que no começo eram ilhas de excelência, e depois se tornaram um conjunto de centros de excelência. Então, todos eles muito ligados à questão da administração de empresas, que era de origem da cultura americana. E aproveitaram que o país tinha dois elementos fundamentais: o elemento da industrialização pesada no Brasil, que começou a partir dos anos 40. Uma tradição de 50 anos de indústria muito grande. O Brasil é um país industrializado há mais de 50 anos, altamente industrializado. Então não foi tirar um país de uma situação tipo Vietnã, uma situação agrícola, foi um país de alta industrialização há muito tempo.
ConJur – Já havia uma preparação, então?
Modesto Carvalhosa – A globalização que levou à criação de intercâmbios de mercados muito importantes como esses de matérias primas e de produtos agrícolas no mundo. Sendo que hoje em dia dizem “Não, o Brasil produz arroz, produz soja.” Mas isso é uma agroindústria no Brasil. O que é isso? A soja que é produzida no Brasil é fruto de uma agroindústria da mais alta sofisticação. E é assim também o açúcar, o etanol. Não se pode dizer que os produtos de exportação brasileira são matéria prima. Não são matéria primas. São matérias fundamentais, de composição do produto, mas são matérias feitas frutos de uma agroindústria fundamental e de uma industria de extração também de alta tecnologia. Depois, você pega um país industrializado, um país que acrescentou os centros de excelência, a globalização e um mercado inesgotável, eterno, tipo o americano. Então, você tem todos os fatores possíveis para ser um potencia econômica.
ConJur — O Brasil tem infraestrutura para continuar na ponta do desenvolvimento econômico?
Modesto Carvalhosa — Não tem infraestrutura, mas infraestrutura se faz. Os outros países emergentes têm uma infraestrutura muito pior. A Rússia é péssima em estradas e tudo mais. A Índia nem se diga. Então, a falta de infraestrutura brasileira está dentro do nível dos emergentes. É um deficiência de estrutura grande que você encontra em todos esses países, e que deve ser tratada. Mas você não pode tratar um elemento só de infraestrutura sem ter elemento humano, e você não tem elemento humano. Então, há uma grande demanda de recursos humanos de setores como a construção civil, que é básico. Você não tem elementos, você tem que importar gente da Espanha. A Espanha está bobeando, deveria mandar todo mundo para cá, fariam um lucro grande.
ConJur — A legislação empresarial econômica brasileira ajuda o desenvolvimento?
Modesto Carvalhosa — Ajuda. A legislação brasileira é muito boa. A burocracia brasileira é péssima, mas a legislação é muito boa, muito moderna. E os escritórios de advocacia têm todas as qualidades necessárias para tratar de toda essa globalização. Dentro dos centros de excelência do Brasil estão os escritórios de advocacia.