Juiz precisa fundamentar imposição de fiança

Assim como na prisão preventiva, a exigência de fiança pelo juiz deve vir acompanhada de elementos concretos que a fundamentem, da apresentação de fatos ou atos que indiquem a real, e não abstrata, necessidade da medida. Este foi o argumento usado pelo desembargador Wowk Penteado, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, para aceitar o pedido de liminar contra fiança de R$ 486 mil imposta pelo juiz Sérgio Moro, da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba. O juiz explicou que o valor seria uma forma de vincular o acusado ao processo e também de assegurar futura reparação do dano.

O réu foi preso em abril deste ano durante a operação déjà vu da Polícia Federal, em parceria com a Receita Federal e o Ministério Público Federal. Ele, dirigente de uma Oscip, é acusado de desvio de recursos públicos recebidos pela Agência de Desenvolvimento Educacional e Social Brasileira (Adesobras) para financiar programas sociais. De acordo com o processo, o dinheiro desviado seria usado para favorecer empresas de consultoria e assessoria. A sua prisão foi revogada pelo TRF-4, que reconheceu a sua desnecessidade.

No pedido de Habeas Corpus contra a fiança, os advogados Pierpaolo Cruz BottiniIgor TamasauskasAna Fernanda Ayres DellossoDanyelle da Silva Galvão alegaram que o valor foi fixado sem os argumentos legais exigidos em lei. “A imposição de fiança, como medida cautelar pessoal, exige do magistrado a demonstração de sua pertinência ou necessidade”, lembra a defesa.

“Em suma, a determinação da fiança não é automática e exige que o magistrado aponte os elementos concretos que indicam que o acusado não estará vinculado aos atos do processo ou à reparação final do dano”, apontam os advogados. A defesa alega ainda que “ao fundamentar — ainda que de forma inadequada — a cautelar de intervenção judicial na entidade dirigida pelo paciente, bem como a proibição de viagem ao exterior, não há elementos que indiquem a razão da fiança”. Depois da Lei 12.403, de 2011, o instituto não é mais compulsório.

O relator do pedido de Habeas Corpus no TRF-4 aceitou os argumentos da defesa. O desembargador Wowk Penteado observou que o juiz Sérgio Moro já decretou a indisponibilidade do patrimônio do réu e que ele não tem outros bens para poder pagar o valor da fiança. “Outrossim, o sequestro efetuado sobre o patrimônio do acusado atende à necessidade de eventual futura reparação do ano, não se mostrando necessária o acréscimo da referida medida para tal fim”, concluiu o desembargador.

Os advogados também argumentam no pedido de liminar que “o paciente já demonstrou absoluta vinculação aos atos processuais. Não se negou a prestar depoimentos, juntar documentos requeridos, responder aos questionamentos judiciais e administrativos, ou seja, sempre cumpriu à risca todas as determinações judiciais ou não, com o escopo de contribuir com o esclarecimento dos fatos e retornar, ao final, às suas atividades”.

O desembargador lembra que “por constituírem medidas mais brandas, a privação cautelar da liberdade reafirmou-se, mais uma vez, como última ratio, somente sendo admitida em casos excepcionais”.

O Código de Processo Penal determina que o não comparecimento aos atos processuais implica em perda da metade do valor da fiança e caso o condenado não se apresente para cumprimento da pena, a perda é total.

Leia abaixo a íntegra da decisão:

Cuida-se de habeas corpus, com pedido de provimento liminar, que busca revogar a imposição de fiança à XXXXX, arbitrada como garantia da aplicação da lei penal, vinculando-o ao processo e igualmente viabilizando a futura reparação do dano, ou, de forma alternativa, a redução do montante fixado ao mínimo legal (10 salários mínimos).

Consta dos autos que o paciente foi denunciado, nos autos da Ação Penal nº 5009807-73.2011.404.7000, pela suposta prática de delitos que envolveriam o desvio de recursos públicos recebidos pela Agência de Desenvolvimento Educacional e Social Brasileira – ADESOBRAS (que é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP), com a finalidade de financiar programas sociais, para favorecer empresas de consultoria e assessoria, bem como o ilícito de branqueamento de capitais.

A impetrante sustenta a ausência de fundamentos para decretação da medida cautelar em questão. Refere que a fiança ‘exige que o magistrado aponte os elementos concretos que indicam que o acusado não estará vinculado aos atos do processo ou à reparação final do dano‘, sendo que ‘a decisão ora vergastada furta-se a apontar qualquer indício de frustração da instrução por parte do Paciente, bem como deixa de indicar quais as razões que levariam a crer na inviabilidade da futura reparação do dano‘. Aduz que ‘o Paciente já demonstrou absoluta vinculação aos atos processuais. Não se negou a prestar depoimentos, juntar documentos requeridos, responder aos questionamentos judiciais e administrativos, ou seja, sempre cumpriu à risca todas as determinações judiciais ou não, com o escopo de contribuir com o esclarecimento dos fatos e retornar – ao final – às suas atividades‘.

Afirma, de outra parte, que ‘a reparação do dano encontra-se assegurada pelo sequestro dos bens do Paciente, já determinado pelo mesmo Juízo que ora impõe a fiança. Ainda que tais valores sejam ‘modestos’ – como apontado pela autoridade judicial – são todos os bens do Paciente, com exceção de seus vencimentos alimentares (doc.3), a impedir qualquer outra intervenção com objetivo de reparação do dano‘.

Assevera, também, que ‘não existe justificativa para a aplicação do valor máximo previsto em lei para a fiança‘, não sendo exposto na ‘decisão em tela qualquer mínima justificativa para a determinação da fiança no patamar máximo’.

Ao receber a denúncia em desfavor do paciente, a autoridade impetrada justificou a imposição de fiança pelas razões que seguem:

347. Também são necessárias medidas cautelares que garantam a aplicação da lei penal, vinculando os acusados ao processo e igualmente viabilizando a futura reparação do dano.

348. A melhor forma de vincular alguém ao processo é a exigência de fiança, pois a quebra implica em perda da metade do valor (art. 343 do CPP) e caso o condenado não se apresente para cumprimento da pena, a perda é total (art. 344 do CPP).

349. A necessidade da fiança não é esvaziada pelo sequestro de bens havido no processo 5007123-78.2011.404.7000, pois a fuga do acusado no curso ou no fim do processo não gera qualquer efeito em relação aos bens sequestrados e sujeitos ao confisco. É a possibilidade de perda parcial ou total da fiança que vincula o acusado ao processo.

350. Além disso, os resultados do sequestro foram até o momento modestos, pelo menos considerando o montante do peculato apontado na denúncia, de cerca de R$ 18.932.890,90.

351. Acrescente-se que os bens móveis e imóveis sequestrados permanecem na posse dos acusados, podendo deles fruírem.

352. Agregue-se ainda a constatação de que parte dos bens dos acusados foi alienada antes da decretação da constrição (v.g.: liberação pela Porto Seguro, previamente ao sequestro, de créditos de R$ 248.405,13 à XXX e de R$ 163.825,23 à XXX, cf. petição da Porto Camargo no evento 35 do processo 5007123-78.2011.404.7000).

353. Portanto, é o caso de impor também aos acusados a fiança como medida cautelar (art. 319, VIII, do CPP) e ‘para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial’. Também servirá ela para garantir a reparação dos danos no caso de eventual condenação.

354. Restrinjo essa medida cautelar apenas aos acusados pelos crimes de peculato e de lavagem XXX, XXX, XXX, XXX, XXX e XXX.

355. Considerando apenas a imputação dos crimes principais, de peculato e de lavagem, fixo a fiança em 200 salários mínimos vigentes, observando o critério previsto no art. 325, II, do CP.

356. Elevo, para XXX, XXX, XXX e XXX, a fiança ao dobro considerando o disposto no §1.º, III, do art. 325 do CP, restando ela fixada, para cada um, em R$ 218.000,00.

357. Elevo, para XXX e XXX, que são apontados como líderes do grupo criminoso pelo MPF, a fiança ao quádruplo, considerando o disposto no §1.º, III, do art. 325 do CP, restando ela fixada, para cada um, em R$ 436.000,00.

358. Para facilitar a prestação de fiança, admito o seu parcelamento em cinco vezes, vencendo a primeira no dia 15 de dezembro de 2011 e as próximas parcelas na mesma data nos meses subsequentes até 15/04/2012. Abra a Secretaria conta vinculada para cada acusado para a realização dos depósitos.

A Lei nº 12.403/11 trouxe importantes alterações ao Código de Processo Penal, dentre as quais a possibilidade de imposição de medidas cautelares diversas da prisão. Por constituírem medidas mais brandas, a privação cautelar da liberdade reafirmou-se, mais uma vez, como última ratio, somente sendo admitida em casos excepcionais. Presentes os seus requisitos, poderá o julgador, entendendo-a desproporcional ao caso concreto, determinar alguma das hipóteses de cautelar diversa.

Confira-se o dispositivo legal que trata da matéria:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;

VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;

VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

IX – monitoração eletrônica.

Por ocasião da deflagração da Operação ‘Deja vu’, o paciente, juntamente com outros investigados, teve decretada a prisão preventiva, sendo a medida posteriormente revogada por esta Corte, uma vez que reconhecida a respectiva desnecessidade.

Como visto, ao receber a denúncia ofertada em desfavor dos investigados, o digno juízo impetrado entendeu por fixar fiança para alguns deles.

Ocorre que, assim como a prisão preventiva, a imposição da caução exige o atendimento a certos requisitos, sendo imperativa a indicação de elementos concretos que a fundamentem, ou seja, apresentação de fatos ou atos que indiquem a real, e não abstrata, necessidade da medida.

Não obstante as ponderáveis razões arroladas pela autoridade impetrada, não se evidencia o apontamento de fatos ou atos praticados pela paciente que atentassem contra a aplicação da lei penal.

A caução, dessa forma, salvo melhor juízo, carece, nos termos do disposto no artigo 282 do Código de Processo Penal, da demonstração da sua necessidade, requisito essencial ao respectivo decreto.

A fixação da fiança como forma de vincular o réu ao processo, uma vez que a sua ‘quebra implica em perda da metade do valor (art. 343 do CPP) e caso o condenado não se apresente para cumprimento da pena, a perda é total (art. 344 do CPP)‘ baseia-se em futuro em incerto evento, não se admitindo, a meu sentir, mera suposição como fundamento bastante para aquela.

De outra parte, verifica-se que o paciente teve decretada a indisponibilidade do seu patrimônio, não restando, aparentemente, outros bens passíveis de suportar a fiança estabelecida.

Outrossim, o sequestro efetuado sobre o patrimônio do acusado atende à necessidade de eventual futura reparação do dano, não se mostrando necessária o acréscimo da referida medida para tal fim.

Isso posto, defiro liminar para suspender os efeitos da decisão, no ponto, quanto ao paciente, até o julgamento do habeas corpus pela Turma.

Comunique-se à digna autoridade impetrada, solicitando-lhe, na oportunidade, informações.

Após, dê-se vista ao Ministério Público Federal.

Publique-se. Intime-se.

Porto Alegre, 25 de novembro de 2011.

Desembargador Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO
Relator

 

Nascido em Brasília em 10 de julho de 1971, formou-se em Direito no Uniceub em 1993. É pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Processo Civil. Conselheiro Seccional eleito por duas gestões 2004/2009, tendo presidido a Comissão de defesa e prerrogativas da OAB/DF. Vice-presidente da OAB/DF no período de 2008/2009. Ocupou o cargo de Secretário-Geral da Comissão Nacional de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB na gestão 2007/2010. Eleito Presidente da OAB/DF para o triênio 2013/2015, tendo recebido a maior votação da classe dos advogados no Distrito Federal com 7225 votos. É diretor do Conselho Federal da OAB na gestão 2016/2019, corregedor-geral da OAB e conselheiro federal pela OAB/DF.