Por Thiago Sus Sobral de Almeida
A banalização do conceito de improbidade administrativa tem sido nociva tanto ao Estado, por lançar nuvens de incerteza e de suspeitas sobre os milhares de atos administrativos praticados diariamente, como à própria sociedade, que perde o referencial de má-fé dos atos efetivamente ímprobos em diferença às irregularidades disciplinares, que possuem tratamento específico.
De fato, a Lei n.º 8.429/1992 [1] perdeu a oportunidade de definir precisamente os elementos essenciais do ato de improbidade, limitando-se a elencar tipos de atos e as respectivas sanções, o que pode levar o intérprete ao despenhadeiro de uma exegese muito ampla do elemento nuclear do tipo, assim como ao uso indiscriminado da ação civil de improbidade administrativa [2].
A referida legislação dividiu em três grandes grupos o que considerou ato de improbidade administrativa: no artigo 9º, tratou das causas que importam enriquecimento ilícito; no artigo 10, considerou as ações ou omissões que geram prejuízos ao erário; e no artigo 11 cuidou das condutas que violam os princípios da administração pública.
Para inibir uma aplicação excessivamente discricionária da lei de improbidade administrativa é necessário levar em conta os pressupostos contidos no caput dos referidos dispositivos legais, por meio dos quais é possível identificar o que realmente deve ser considerado um ato de improbidade, sob pena de se atentar contra os direitos e garantias individuais dos cidadãos da República [3].
Para configurar o enriquecimento ilícito (art. 9º) é necessária a efetiva obtenção da vantagem patrimonial indevida em virtude da função pública exercida (no sentido amplo da palavra) e o indispensável nexo de causalidade entre o recebimento da vantagem e a conduta praticada, não se admitindo ilações genéricas quanto a precisão desse liame.
A lesão ao erário (art. 10) estará caracterizada pela prova do concreto prejuízo econômico aos cofres públicos, desde que também revelado o nexo de causalidade com a ação danosa, e a violação aos princípios da administração pública (art. 11), sejam eles explícitos ou implícitos, consistirá na ofensa de princípios, mas para uma nítida finalidade ímproba [4].
As condutas devem, pois, ser praticadas com dolo (vontade ímproba), admitindo-se, todavia, a modalidade culposa no caso de dano ao erário. Alguns juristas entendem ser inconstitucional a previsão culposa, não obstante outros a admita, já que o artigo 37, § 4º, da Constituição, não fez menção acerca do dolo como requisito essencial para a caracterização do ato ímprobo.
A doutrina é unânime ao afirmar que não há justificativa para os intérpretes da norma classificar toda e qualquer irregularidade administrativa como ato de improbidade, pois “a interpretação da legislação de improbidade deve ser feita à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tanto na tipificação das condutas quanto na aplicação das sanções” [5].
Segundo o professor e procurador da República João Paulo Rabelo, em sua obra intitulada de “In Manual Prático de Improbidade Administrativa. 2. ed. rev. 2015. p. 4”, improbidade seria o “termo técnico para tratar da corrupção que se perfaz com a prática de ilegalidade (violação da ordem jurídica) e o desvirtuamento da função pública”.
A linguagem empregada pela Lei n.º 8.429/1992 esboça margens muito largas, vagas e imprecisas para a aplicação pelo Estado de uma legislação com alto teor de repressividade, descurando-se de parâmetros bem delimitados para aferição da culpabilidade e/ou critérios seguros e mais precisos que deem ao agente estatal implementador da norma maior nível de certeza.
E uma lei que não contém parâmetros firmes e bem identificáveis das condutas às quais comina drásticas sanções não se conforma aos caros postulados norteadores de um Estado Democrático de Direito, que assim determinam: quanto mais intensa a intervenção do Estado sobre o indivíduo, mais fulgente e translúcido deve ser a demarcação da força do interventor.
O termo improbidade é substantivo feminino que designa “desonestidade, má-fé, agir com objetivos espúrios”[6]. O conceito é amplo, mas tem contornos certos e limitados. Improbidade não é toda ilegalidade ou irregularidade, como lembrava o saudoso Ministro Teori Zavascki [7]. Então, não pode o órgão estatal incumbido da aplicação da lei exagerar ou banalizar a utilização do instituto.
Na ADI 4295/DF, proposta no Supremo Tribunal Federal – STF pelo Partido da Mobilização Nacional – PMN, questiona-se a constitucionalidade de treze dispositivos da Lei n.º 8.429/1990, adotando como fundamento a teoria da nulidade da lei por excessiva abertura nos seus termos, alcunhada nos Estados Unidos da América, seu berço, de overbreadth doctrine.
A tese trazida na ação de controle abstrato é a de que, sendo o Estado Democrático de Direito marcado pela distribuição, regulação e limitação do poder, deveria a Lei n.º 8.429/1990 fixar com razoável clareza o que o Estado pode ou não fazer, como forma de conter arbitrariedades e excessos por parte de seus agentes, que são os intérpretes e implementadores da norma.
E nesse particular a aplicação da overbreadth doctrine não só tonifica como também guarnece o perímetro de proteção de direitos e garantias fundamentais quando a redação de determinado dispositivo legal possibilita uma amplitude tão grande de interpretações que algumas possíveis aplicações da norma possam atingir – com intensidade – direitos constitucionalmente protegidos [8].
Foi no caso Broadrick v. Oklahoma, 413 U.S. 601 (1973), que a Supreme Court Of The United States definiu as balizas de aplicação da overbreadth doctrine. Na ocasião, questionava-se a constitucionalidade de uma lei estadual que proibia certos tipos de agentes públicos estaduais de se engajarem em uma variedade de atividades políticas partidárias, como fazer campanha ou solicitar fundos para candidatos e concorrer a cargos próprios.
Em sua decisão, a referida Corte, embora tenha negado a amplitude inconstitucional da norma então impugnada, estabeleceu os critérios judiciais para a aplicação da overbreadth doctrine, concluindo, que a amplidão apta a tornar inconstitucional determinado texto normativo deve ser substancial em relação ao âmbito de aplicação da norma.
Entenderam os juízes constitucionais norte-americanos que uma lei somente será considerada inválida em decorrência de sua amplitude inconstitucional se for possível identificar um número considerável de suas aplicações relevantes – extraído hipotética ou concretamente a partir de julgados – for inconstitucional [9].
A Suprema Corte norte-americana voltou a aplicar a overbreadth doctrine no caso United States v. Stevens, 559 U.S. 460 (2010). Discutiu-se, naquela oportunidade, a constitucionalidade de uma lei federal americana que criminalizou a realização ou o comércio de artigos/produtos em que houvesse “qualquer representação visual ou auditiva de crueldade a um animal” (livros, filmes, documentários, imagens de caça, pesca e abate humanitário).
Já nesse caso, a Corte entendeu que, não obstante houvesse várias situações em que a proibição se mostrava razoável, dada excessiva abertura nos seus termos, haveria uma infinidade de outras hipóteses em que tal limitação à liberdade de expressão se mostraria arbitrária, razão pela qual a lei foi declarada inconstitucional [10]. E quem sabe não seja essa a factível conclusão do Plenário do STF quando do julgamento da ADI 4295/DF?
Uma coisa é certa: a vagueza da Lei n.º 8.429/1992 é crítica e permite sua aplicação desmedida, porque não dispõe de modelo bem demarcado de culpa para guiar a ação do agente estatal implementador (um gestor público, um promotor de justiça, um juiz etc.) ameaçando a garantia dos cidadãos de uma justa e não-discriminatória aplicação das leis.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ reconhece que o fato de a probidade ser atributo de toda atuação do agente público pode suscitar o equívoco interpretativo de que qualquer falta por ele praticada, por si só, representaria quebra desse atributo, sujeitando-o, com isso, às duras sanções encartadas na Lei n.º 8.429/1992.
Diz o nosso Areópago Cidadão: “o conceito jurídico de ato de improbidade administrativa não é daqueles que a doutrina chama de elásticos, isto é, daqueles que podem ser ampliados para abranger situações que não tenham sido contempladas no momento da sua definição” [11]. A Corte vem rechaçando os excessos interpretativos gerados pela abertura excessiva dos termos da norma federal.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem sido meticuloso para verificar os fatos e provas que acompanham a peça de acusação de improbidade. Veja-se, nesse sentido, recente precedente da Corte, do qual se extrai fragmentos das criteriosas ponderações do Desembargador Federal OLINDO MENEZES lançadas em seu bem pedagógico voto, in verbis:
Sustenta o Ministério Público Federal que, para a caracterização dos atos previstos no art. 11 da Lei nº 8.429/92 basta a configuração do dolo genérico, o que teria ficado demonstrado na conduta dos requeridos, acentuando que Marcos Roberto de Oliveira, Gestor do Contrato firmado com o MPF, negligenciou seus deveres de acompanhar, controlar e fiscalizar o contrato; e que houve o dolo eventual na conduta do demandado […].
[…]
Apesar das diferentes leituras administrativas dos mesmos fatos, pela sentença e pelas apelações, não diviso nos recursos razões jurídicas suficientes para a reforma da sentença, cujos termos não podem ser desautorizados pelo discurso formal dos recursos.
Os atos ímprobos descritos no artigo 11 da Lei nº 8.429/92 não se confundem com simples ilegalidades administrativas ou inaptidões funcionais [12], devendo apresentar alguma aproximação objetiva com a essencialidade da improbidade, consubstanciada na inobservância dos princípios regentes da atividade estatal — legalidade, impessoalidade, honestidade, imparcialidade, publicidade, eficiência e moralidade. Numa palavra, a desonestidade.
A textura aberta do preceito exige, para evitar resultados sem razoabilidade, um certo temperamento na sua aplicação, para que meras irregularidades não sejam consideradas atos ímprobos e atraiam as consequências severas da lei. A moralidade, por ser um princípio de conceito indeterminado, vago, necessita estar associado a outros princípios, como o da legalidade.
[…]
Esse é o fato. Não ficou comprovada a má-fé do gestor ou dolo na conduta, com o intuito de lograr proveito próprio, mas apenas uma demora na percepção da irregularidade, que, após ter sido comunicada, foi devidamente apurada e sanada.
A má-fé, caracterizada pelo dolo, é que deve ser apenada. Não é toda ilegalidade e/ou imoralidade que caracterizam um ato de improbidade.
É claro que os muitos órgãos públicos dos distintos Poderes da República, assim como seus incontáveis setores e repartições, podem prestar eventualmente um serviço público deficitário, porém, isso – nem de longe – autoriza que seus dirigentes ou servidores sejam automaticamente acusados da prática de ato de improbidade.
Em linhas de arremate, conclui-se: nem toda ilegalidade configura improbidade [13]. As infrações (lato sensu) devem ser classificadas de acordo com critérios hierárquicos em harmonia e submissão a dimensão fragmentária do direito punitivo. Não à toa fora instituída na Câmara dos Deputados uma comissão de juristas para elaborar o anteprojeto de reforma da legislação [14].
O presidente da comissão, ministro Mauro Campbell, do STJ, defendeu que o novo texto legal incorpore jurisprudências dos tribunais em relação à lei e que a nova versão contribua para evitar que sejam cometidos abusos e injustiças. Em seguida, afiançou: “a lei tem 25 anos e já prestou belíssimos serviços. Já qualificamos muito o gestor brasileiro, mas temos que reconhecer que tivemos abusos” [15].
A toda evidência, a experiência de releitura, reinterpretação e reconstrução semântico-jurídica permanente dos múltiplos atores que atuam no campo jurídico despertou a necessidade de sistematizar e aperfeiçoar a legislação vigente. O que se espera desse esforço da comissão é um fruto de induvidosa qualidade: uma legislação focada em nossa realidade social e que seja, por tudo e em tudo, submissa à nossa atual Bíblia Política.
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[1] Com 26 anos de vigência completados em 3/6/2018 (texto originário publicado no DOU de 3/6/1992).
[2] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2011.
[3] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa: comentários à Lei n.º 8.4293/1992. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 27-31.
[4] Eis a pedra de toque quanto ao ponto.
[5] LUCON, Paulo Henrique dos Santos; COSTA, Eduardo José Fonseca; COSTA, Guilherme Recena (Coord.). Improbidade administrativa: aspectos processuais da Lei 8.249/92. São Paulo: Atlas, 2013.
[6] Cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP (Academia Brasileira de Letras – ABL).
[7] REsp 1163643/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/03/2010, DJe 30/03/2010.
[8] Segundo Decker, “a statute is struck down for ‘overbreadth’ if it ‘does not aim specifically at the evils within the allowable area of state control but … sweeps within its ambit other [constitutionally protected] activities…’ That is, if a statute’s language, given its normal meaning, is so broad that the statute’s sanctions may unnecessarily apply to conduct that the state is not entitled to regulate, it is overbroad” (DECKER, John F. Overbreadth Outside the First Amendment. 34 N.M.L. Rev. 53, 2004).
[9] Transcreve-se trecho da acenada decisão: “To put the matter another way, particularly where conduct, and not merely speech, is involved, we believe that the overbreadth of a statute must not only be real, but substantial as well, judged in relation to the statute’s plainly legitimate sweep.” […] “In the First Amendment context, a law may be invalidated as overbroad if a ‘substantial number’ of its applications are unconstitutional”. Syllabus, United States v. Stevens, 559 U.S. 460 (2010). Disponível em: http://www.supremecourt.gov/opinions/09pdf/08-769.pdf
[10] O Tribunal rejeitou o argumento do governo de que a lei deveria ser mantida com base na promessa de discrição do Ministério Público para aplicar a lei “responsavelmente”.
[11] REsp 1558038/PE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 09/11/2015
[12] A lei alcança o administrador desonesto, não o inábil, despreparado, incompetente e desastrado. Vide precedentes do STJ: REsp 1186192/MT, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJe 02/12/2013; REsp 1257150/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/09/2013, DJe 17/09/2013; AgRg no AREsp 21.662/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 15/02/2012; REsp 734.984/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/12/2007, DJe 16/06/2008; REsp 758.639/PB, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/03/2006, DJ 15/05/2006, p. 171; REsp 213.994/MG, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/08/1999, DJ 27/09/1999, p. 59.
[13] GARCIA, Emerson et ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 9ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris (e-book), 2017.
[14] ATO DO PRESIDENTE DE 22/02/2018, Diário da Câmara dos Deputados – Suplemento – 23/2/2018, Página 9 (Publicação Original).
[15] http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/555018-COMISSAO-DE-JURISTAS-QUE-DISCUTE-LEI-DE-IMPROBIDADE-QUER-INCORPORAR-JURISPRUDENCIAS-E-EVITAR-ABUSOS.html