Tem-se notícia de que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) começou a julgar recursos de contribuintes que discutem a legalidade da exigência de pagamento de Imposto de Renda sobre ganhos de capital, supostamente obtidos pelas instituições titulares de títulos patrimoniais da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) no contexto do vulgarmente chamado processo de “desmutualização” das bolsas, ocorrido no ano de 2007.
Trata-se de tema que desperta grande clamor no meio jurídico, seja pela ilegalidade da pretensão do Fisco de tributar ganhos de capital não realizados, seja, principalmente, pelo fato de a interpretação oficial da Administração Fiscal que fundamenta a pretensão fiscal assentar, como se verá, em premissa juridicamente falsa.
Passemos, antes de mais, a uma breve descrição dos fatos que sucederam em 2007.
Até 2007, a Bovespa e a BM&F eram associações sem fim lucrativo, regidas por seus respectivos estatutos e pelos artigos 53 e ss. do Código Civil, com seus patrimônios representados por títulos de propriedade detidos pelos associados.
Durante aquele ano, a Bovespa e a BM&F foram objeto de processos de (i) “desmutualização”, assim designada a “transformação” de associações integradas exclusivamente pelos membros registrados em sociedades anônimas; seguida da (ii) abertura do capital das companhias resultantes de referida “transformação” para a negociação das respectivas ações em bolsa de valores.
A “desmutualização” da Bovespa ocorreu em 28 de agosto de 2007 e envolveu as seguintes etapas, todas realizadas na mesma data: (i) cisão parcial da Bovespa, com a versão das parcelas de seu patrimônio em duas sociedades: Bovespa Holding e Bovespa Serviços S.A. (“Bovespa Serviços”); e (ii)incorporação das ações da Bovespa Serviços ao capital da Bovespa Holding (artigo 252 da Lei 6.404/1976).
Em decorrência das operações em questão, os antigos detentores de títulos patrimoniais da Bovespa passaram a ser titulares de ações representativas do capital da Bovespa Holding, a qual, por sua vez, passou a ter como subsidiária integral a Bovespa Serviços.
A “desmutualização” da BM&F seguiu idêntico modelo jurídico, a saber: em 20 de setembro de 2007, houve (i) a cisão parcial da BM&F, com a versão das parcelas de seu patrimônio em duas sociedades: BM&F Holding e BM&F Serviços S.A. (“Bovespa Serviços”); e (ii) a incorporação das ações da BM&F Serviços ao capital da BM&F Holding.
Em consequência das apontadas etapas, os antigos detentores de títulos patrimoniais da BM&F passaram a ser titulares de ações representativas do capital da BM&F Holding, por sua vez detentora da integralidade do capital da BM&F Serviços.
O modelo jurídico de “desmutualização” baseado na cisão de uma entidade sem fins lucrativos já havia sido adotado quando da criação da Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (“CBLC”) e da Bovespa Serviços, em 1998. Nessas operações, também foi realizada uma cisão parcial da então Bolsa de Valores de São Paulo, com versão da parcela cindida do patrimônio para duas sociedades com finalidade lucrativa, a CBLC e a Bovespa Serviços.
Naquela ocasião, a Associação Nacional das Corretoras de Valores, Câmbio e Mercadorias (Ancor) apresentou à COSIT uma consulta formal, sobre o tratamento tributário da operação. A resposta se deu através da Solução de Consulta COSIT 13, de 10 de novembro de 1997, que concluiu pela sua neutralidade fiscal.
O entendimento da Administração Fiscal, no entanto, foi radicalmente alterado — de forma, aliás, paradoxal — por meio da Solução de Consulta COSIT 10, de 26 de outubro de 2007, com a seguinte ementa:
“OPERAÇÃO DE DESMUTUALIZAÇÃO DAS BOLSAS DE VALORES. O instituto da cisão, disciplinado nos arts. 229 e segs. da Lei nº 6.404, de 1976, e no art. 1.122 da Lei nº 10.406, de 2002, só é aplicável às pessoas jurídicas de direito privado constituídas sob a forma de sociedade. Às bolsas de valores constituídas sob a forma de associações se aplica o regime jurídico estatuído nos arts. 53 a 61 da Lei nº 10.406, de 2002 (Código Civil de 2002). O art. 61 da Lei nº 10.406, de 2002, veda a destinação de qualquer parcela do patrimônio das bolsas de valores, constituídas sob a forma de associações, a entes com finalidade lucrativa. As sociedades corretoras devem avaliar as cotas ou frações ideais das bolsas de valores pelo custo de aquisição. O fato de a operação de ‘desmutualização’ de associações não encontrar amparo no ordenamento jurídico não obsta a incidência do imposto de renda sobre a diferença entre o valor nominal das ações (da sociedade) recebidas pelos associados (sociedades corretoras) e o custo de aquisição das cotas ou frações ideais representativo do patrimônio segregado das bolsas de valores.
Dispositivos legais: Lei n.º 10.406, de 2002, art. 61; Lei n.º 9.532, de 1997, arts. 16 e 17.”
Idêntico posicionamento foi adotado na Solução de Consulta SRF 521, de 7 de novembro de 2007, com a mesma ementa, que tinha por objeto as consequências fiscais da operação de desmutualização da BM&F.
O “novo” entendimento do Fisco assenta no seguinte silogismo: (i) não há cisão de associações; (ii)por essa razão, a operação praticada configura devolução de patrimônio de entidade isenta; e (iii) a devolução de patrimônio de entidade isenta é tributada, ex vi do artigo 17 da Lei 9.532/1997.
De acordo com esse “novo” entendimento, a mera substituição no patrimônio das instituições dos títulos das bolsas por ações, sem que houvesse o recebimento de qualquer quantia em dinheiro, configuraria fato gerador do Imposto de Renda a título de ganho de capital.
Além de contrariar a interpretação já adotada em relação a fatos idênticos, o “novo” entendimento do Fisco é equivocado e ilegal, visto que se baseia na premissa (falsa) de que as associações não podem ser objeto de cisão, operação típica que é autorizada expressamente pelo Código Civil, bem como porque pretende tributar pelo Imposto de Renda ganhos de capital não realizados.
Com efeito, o artigo 2.033 do Código Civil, ao contrário do que afirma o Fisco, reconhece expressamente a possibilidade de cisão de associações, determinando que tais operações sejam reguladas pelo regime previsto naquele mesmo diploma (ou seja, artigo 1.122). Confira-se:
“Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44, bem como sua transformação, incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código”.
O artigo 44 do Código Civil, por sua vez, estabelece:
São pessoas jurídicas de direito privado:
I – as associações;
II – as sociedades;
III – as fundações.
IV – as organizações religiosas;
V – os partidos políticos.”
Afirmar que a cisão “só é aplicável às pessoas jurídicas de direito privado constituídas sob a forma de sociedade”, recusando sua aplicação às associações em geral é um gravíssimo erro de direito da Solução de Consulta COSIT 10/2007 que compromete todo o raciocínio subsequente.
A cisão é figura jurídica típica e consiste na operação pela qual a pessoa jurídica transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais outras, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a pessoa jurídica cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão (artigo 229 da Lei 6.404/1976).
Conforme leciona Modesto Carvalhosa, a cisão não se confunde com a liquidação, “(…), na medida em que a transferência do seu patrimônio se faz diretamente a favor das sociedades dela resultantes. (…) diretamente, o patrimônio da sociedade cindida transfere-se às novas ou já existentes sociedades, que se tornam sucessoras universais, na exata medida da parcela do patrimônio que lhes é transferida.” (Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, 4º Vol., São Paulo 2002, 300).
Os efeitos da cisão não consistem, pois, na liquidação do investimento, com a devolução da respectiva parcela do patrimônio ao sócio, mas sim na mera transferência, total ou parcial, pelo fenômeno de sucessão a título universal, do investimento preexistente em uma pessoa jurídica para uma ou outras mais.
O artigo 17 da Lei 9.532/1997, invocado como fundamento da pretensão de tributação das operações pelas Soluções de Consulta COSIT 10/2007 e SRF 521/2007, estabelece que:
“Sujeita-se à incidência do imposto de renda à alíquota de quinze por cento a diferença entre o valor em dinheiro ou o valor dos bens e direitos recebidos de instituição isenta, por pessoa física, a título de devolução de patrimônio, e o valor em dinheiro ou o valor dos bens e direitos que houver entregue para a formação do referido patrimônio. (…)
§ 3º Quando a destinatária dos valores em dinheiro ou dos bens e direitos devolvidos for pessoa jurídica, a diferença a que se refere o caput será computada na determinação do lucro real ou adicionada ao lucro presumido ou arbitrado, conforme seja a forma de tributação a que estiver sujeita.”
Ora, confirmada (i) a plena possibilidade de cisão das associações e (ii) que tal operação não importa em devolução de patrimônio, fácil se torna concluir pela absoluta inaplicabilidade do artigo 17 da Lei 9.532/1997 às operações de “desmutualização” da Bovespa e da BM&F.
Mas qual seria então o tratamento tributário a adotar?
A resposta está na natureza permutativa ou substitutiva do fenômeno da cisão.
Com efeito, na cisão, o detentor das participações na pessoa jurídica cindida não transfere bens ou direitos de qualquer natureza, limitando-se, de modo estático e passivo, a ter no seu patrimôniosubstituídas as participações que previamente detinha pelas novas ações emitidas pela companhia que absorve a parcela cindida do patrimônio da primeira pessoa jurídica investida, ocorrendo um fenômeno de sub-rogação real.
Assim, os acionistas das novas companhias (no caso, a Bovespa Holding e a BM&F Holding) deveriam manter o mesmo valor patrimonial das participações nas pessoas jurídicas cindidas (i.e., Bovespa e BM&F), constante de sua contabilidade, limitando-se a informar que esse mesmo valor se passa a se referir às ações das novas companhias que as substituíram. Eventual ganho de capital apenas seria tributado quando realizado em alienações futuras das ações, que importarem no recebimento de recursos financeiros.
E isto em atenção ao comando de lei complementar — o artigo 43 do Código Tributário Nacional — que apenas autoriza a tributação pelo Imposto sobre a Renda quando ocorre a realização efetiva de um ganho, pois é precisamente neste momento que ocorrerá a aquisição de disponibilidade econômica e jurídica de renda. Até então, qualquer pretensa valorização dos ativos representa um ganho meramente potencial, insuscetível de tributação.
Que a “realização” do ganho é condição sine qua non da sua tributação encontra-se estampado com todas as letras na Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda que encaminhou o projeto do Decreto-lei 1.598/1977, que adaptou a legislação do Imposto de Renda à Lei 6.404/1976, segundo a qual “o presente (projeto) adota a orientação geral de submeter os ganhos de capital ao imposto somente quando realizados, isto é, quando a pessoa jurídica tem condições financeiras para suportar o ônus tributário”.
A intributabilidade das operações de natureza permutativa já foi afirmada categoricamente pela no Parecer da PGFN 161 970-91, de 23 de setembro de 1991, que entendeu que a entrega pelo licitante vencedor de títulos de dívida pública federal ou de outros créditos contra a União, como contrapartida à aquisição das ações leiloadas no âmbito do Programa Nacional de Desestatização, caracteriza-se como permuta, caso em que não incide o Imposto de Renda sobre o ganho de capital só pela efetivação do leilão ou de celebração do contrato respectivo, e de que ocorrerá ganho de capital tributável por ocasião da realização desse ganho pela alienação das ações adquiridas, por via de permuta.
O fundamento principal desta conclusão reside em que na permuta não há realização do ganho de capital: “Esta tributação, ainda, seria iníqua, pois como não foram recebidos cruzeiros, não haveria disponibilidade líquida do contribuinte e, em consequência naquele momento nenhuma base de cálculo para o fato gerador, pois a renda fica sujeita à tributação quando realizada e quantificadas evidentemente não é a hipótese em exame”.
Acresce, por fim, e isso é decisivo, que o entendimento no sentido de considerar como imediatamente tributável uma mera valorização não realizada de ativos viola o próprio conceito constitucional de renda, consagrado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a saber:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA – CONCEITO. Lei n.º 4.506, de 30.XI.64, art. 38, C.F./46, art. 15, IV; VF/67, art. 22, IV; EC 1/69, art. 21, IV. CTN, art. 43.
I. – Rendas e proventos de qualquer natureza: o conceito implica reconhecer a existência de receita, lucro, proveito, ganho ou acréscimo patrimonial que ocorrem mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso. C.F., 1946, art. 15, IV; CF/67, art. 22, IV; EC 1/69, art. 21, IV. CTN, art. 43.
II. – Inconstitucionalidade do art. 38 da Lei 4.506/64, que institui adicional de 7% de imposto de renda sobre lucros distribuídos.
III. – R.E. conhecido e provido.” (RE n.º 117.887-6/SP, rel. Min. Carlos Velloso, D.J. 23.04.93)
A comunidade jurídica espera que seja prontamente desmascarado o erro de direito em que assenta o entendimento da Solução de Consulta COSIT 10/2007, reconhecendo que as associações podem ser cindidas, bem como que as operações de cisão, por si sós, da Bovespa e da BM&F, com absorção das parcelas cindidas de seus patrimônios pela Bovespa Holding e pela BM&F possuem efeito meramente substitutivo, sendo fiscalmente neutras, na medida em que não importam na realização de ganho tributável, o qual apenas pode ser verificado no momento de eventuais futuras alienações das participações recebidas.