“Informações históricas sobre o mandado de segurança contra ato judicial”

Por Johann Homonnai Júnior

 

Nada obstante a Lei 12.016/2009 exigir apenas que o ato judicial contra o qual se impetra o mandado de segurança esteja sujeito a recurso sem efeito suspensivo, é comum, na prática forense, ouvir-se o acréscimo de requisitos como “manifesta ilegalidade” ou “teratologia processual”.

A jurisprudência anterior a essa lei era, na realidade, mais generosa porque chegava a admitir a impetração do mandado de segurança até mesmo contra o ato judicial sujeito a recurso com efeito suspensivo.

O conceito de manifesta ilegalidade ou ato judicial teratológico nasceu do desconhecimento ou da simplificação da real necessidade sobre a qual foi edificada a jurisprudência que abriu as portas para o combate do ato judicial por meio do mandado de segurança. O professor Galeno Lacerda, em memoriais citados no RE 76.909, r. Ministro Xavier de Albuquerque, esclarece que:

“Na ordem jurídica, não se sufocam necessidades reais. Desamparadas de tutela jurídica, haverão elas de eclodir, pujantes, na doutrina e na jurisprudência, a reclamar o esforço construtivo de jurista e de juiz. Por este motivo, na falta de recurso suspensivo, passou a ser utilizado, entre nós, o remédio que a Constituição de 34, como a de 46 e a atual, consagravam contra o ato ilegal de qualquer autoridade, a fim de obter-se, com o mandado liminar, a indispensável suspensão, e, com a sentença final a ser proferida no novo processo, a desconstituição da interlocutória, nos casos excepcionais de dano, oriundo de ilegalidade”.

O mandado de segurança é uma ação mandamental, criada pelo Direito brasileiro, sem similar em outros sistemas jurídicos. Depois de a jurisprudência ser confrontada com o uso de interditos possessórios e do Habeas Corpus para reparar ilegalidade que não comprometesse a liberdade de locomoção, o mandado de segurança foi instituído na Constituição de 1934:

“Artigo 113 — A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

33) Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes”.

Embora alguns historiadores enxerguem na Lei 221, de 20 de novembro de 1894, o antecedente longínquo do mandado de segurança, por prever a hipótese de os juízes poderem apreciar a validade das leis e dos regulamentos, o fato é que o instituto, com essa denominação, somente surgiu, por sugestão de João Mangabeira, no Congresso Jurídico de 1922 (Castro Nunes. Do mandado de segurança, 4. ed., 1954, pág. 22).

O preceito constitucional de 1934 foi regulado pela Lei 191, de 16 de janeiro de 1936:

“Artigo 1º — Dar-se-á mandado de segurança, para defesa de direito certo e incontestavel, ameaçado, ou violado, por acto manifestamente inconstitucional, ou illegal, de qualquer autoridade.

Paragrapho unico — Consideram-se actos de autoridades os das entidades autarchicas e de pessoas naturaes ou juridicas, no desempenho de serviços publicos, em virtude de delegação ou de contracto exclusivo, ainda quando transgridam o mesmo contracto”.

Essa lei vigorou somente até a Constituição de 1937, que não a recepcionou. O mandado de segurança ressurgiu com a Constituição de 1946 de forma mais abrangente:

“Artigo 141 — A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

§24 — Para proteger direito líquido e certo não amparado por Habeas Corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder”.

As expressões “direito certo e incontestável” e “ato manifestação inconstitucional ou ilegal” foram substituídas por “direito líquido e certo” e “ilegalidade ou abuso de poder”.

Sob a Constituição de 1946, foi editada a Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951, que assim definiu o mandado de segurança:

“Artigo 1º — Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por Habeas Corpus, sempre que, ilegalmente ou com abuso do poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofre-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”.

Na falta de norma que estabelecesse os requisitos para a impetração do mandado de segurança contra ato judicial, a jurisprudência oscilou entre admiti-lo em qualquer hipótese ou somente naquelas em que não houvesse recurso capaz de impedir a produção de efeitos pelo ato judicial.

O uso do mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso com efeito suspensivo gerava o grave inconveniente de subverter todo o sistema recursal, substituindo os meios recursais pelo mandado de segurança, além de, em hipóteses mais exageradas, admiti-lo até mesmo contra a decisão judicial transitada em julgado.

A vigente Lei do Mandado de Segurança (12.016, de 7 de agosto de 2009), resolvendo polêmica de longa data e amparada na melhor construção jurisprudencial, admite o seu cabimento somente contra ato judicial sujeito a recurso sem efeito suspensivo:

“Artigo 1º — Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por Habeas Corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.

(…)

Artigo 5º — Não se concederá mandado de segurança quando se tratar:

I — de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução;

II — de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo;

III — de decisão judicial transitada em julgado”.

A evolução histórica da legislação que regula o mandado de segurança revela uma fase inicial acanhada, em que o uso de expressões superlativas representa os albores do controle de legalidade do ato administrativo que violasse direitos do cidadão.

Hoje, com a indiscutível garantia constitucional de inafastabilidade do controle judicial, não mais se justifica a manutenção de conceitos reforçados ou superlativos, sobretudo porque eles marcaram uma evolução que vai da impossibilidade de defesa de direitos do cidadão contra ato de autoridade até a possibilidade de sua total sindicabilidade.

Remanesceram, nos textos normativos, as expressões “direito líquido e certo” e “ilegalmente ou com abuso de poder”, embora, a essa altura, bastaria que a lei previsse a impetração do mandado de segurança para proteger direito ameaçado ou violado por ato ilegal.

O direito é sempre certo. A dúvida poderá estar na prova dos fatos que o originam. A expressão direito líquido e certo se refere à demonstração, por meio dos documentos que instruem a petição inicial da ação mandamental, do direito postulado (é o que correntemente se chama de prova pré-constituída).

Do mesmo modo, é suficiente para o ajuizamento do mandado de segurança a prova de uma ilegalidade. A expressão “ilegalidade ou abuso de poder” é hiperbólica porque o abuso de poder sempre constitui uma ilegalidade.

A Constituição de 1934 previa a utilização do mandado de segurança contra ato manifestamente inconstitucional ou ilegal. A lei atualmente em vigor prevê a utilização do mandado de segurança contra ato praticado ilegalmente ou com abuso de poder.

Tanto a expressão antiga quanto a atual são pleonásticas. Ato manifestamente inconstitucional ou ilegal poderia ser substituído por ato ilegal. Inconstitucionalidade é ilegalidade qualificada. É irrelevante que a norma violada seja a Constituição, uma lei, ou outro ato normativo subordinado.

Manifestamente, assim como a expressão direito líquido e certo, somente pode se referir à demonstração da ilegalidade e não à aferição desse fenômeno em si. Pode existir ilegalidade praticada de forma subreptícia, com desvio de finalidade. Uma vez revelada, será sempre ilegalidade, sem necessidade de adjetivação.

No RE 76.909, r. Ministro Xavier de Albuquerque, julgado no distante ano de 1973, o Supremo Tribunal Federal fez as seguintes observações relevantes, que retratam o entendimento da jurisprudência sobre o cabimento do mandado de segurança contra ato judicial. E, naquela época, a mais alta corte do país admitia a utilização da ação mandamental contra ato judicial sujeito a recurso com efeito apenas devolutivo, mas desde que causasse dano irreparável à parte:

“A Súmula 267 não distingue, ao negar que possam ser atacadas por mandado de segurança, entre decisões judiciais recorríveis com efeito suspensivo ou sem tal efeito. Poder-se-á entender que, não distinguindo, também não veda o entendimento do acórdão recorrido no sentido de que só as decisões de que caiba recurso com efeito suspensivo, ou correição com antecipação provisória de eficácia, é que os precedentes que informaram dita Súmula apreciaram, em mais de um caso, a discutida questão, e em nenhum deles o Supremo Tribunal Federal chegou a admitir mandado de segurança contra decisão judicial recorrível pela só razão de o recurso cabível não ter efeito suspensivo…”.

Depois de relatar diversos casos em que se admitia e também em que não se admitia o mandado de segurança contra ato judicial, assim se pronuncia o relator:

“(…) A questão da recorribilidade das interlocutórias é das mais controversas e aflitivas da ciência jurídica processual e, por isso mesmo, suscetível de opção por parte do legislador. Nosso sistema atual de processo civil é criticado em toda parte pela excessiva multiplicidade de recursos e de hipóteses nas quais são admitidos (…). Bem ou mal, o legislador optou pela restrição à recorribilidade das interlocutórias, e não lhe farei a injustiça, data vênia, de supor que o motivou a ignorância do velho direito e da tradição luso-brasileira.

Nem por isso, porém, inadmito pura e simplesmente o uso do mandado de segurança contra atos ou decisões judiciais. Sequer poderia fazê-lo, pois o próprio legislador o admite, ainda que restritivamente.

Na fixação das linhas dessa restrição é que bate o ponto. Não aceito que o só fato de não ser suspensivo o recurso cabível do ato que se quer impugnar, seja bastante para autorizar o uso do mandado de segurança. A ser assim, chegar-se-ia à conclusão, que me parece estranha e anômala, de admitir o writ contra todas as interlocutórias agraváveis por instrumento, salvo aquelas em relação às quais a lei permite ao Juiz atribuir ao agravo o efeito de suspender a decisão recorrida, e assim mesmo, quanto a estas, de admiti-lo quando o Juiz, no uso ponderado da faculdade que lhe confere a lei, entendesse de não impor a suspensividade. Consequência mais estranha e mais anômala seria, nessa mesma linha, admitir-se o writ contra decisões apeláveis e apeladas, mas sem efeito suspensivo por expressa disposição legal, ou, pelo menos, contra os despachos que, obedecendo à lei, recebessem tais apelações no só efeito devolutivo.

A não-suspensividade do recurso cabível é, certamente, para mim e creio que para todos, condição necessária à admissibilidade do mandado de segurança, pois não teria sentido subverterem-se a progressão e o desdobramento regulares da relação processual com a intercalação de writ inócuo, que objetivasse a fim já garantido pelo próprio recurso ordinário. Mas não é, nem pode ser, condição suficiente.

O dano irreparável, ameaçado pelo ato que se quer impugnar, parece-me idôneo e útil à solução de cada caso concreto…

(…)

Em suma, condições para a admissibilidade do mandado de segurança contra ato judicial são, para mim, a não suspensividade do recurso acaso cabível, ou a falta de antecipação de eficácia da medida de correição a que também alude a lei, uma ou outra somadas ao dano ameaçado por ilegalidade patente e manifesta do ato impugnado e, com menor exigência relativamente a tal ilegalidade, àquele efetiva e objetivamente irreparável”.

A leitura desse precedente desconstrói a mística de que o mandado de segurança só é cabível contra ato judicial quando houver “manifesta ilegalidade” ou “teratologia processual”.

Não se vê, nos votos do provecto precedente do STF, nenhuma utilização de expressões que nada revelam de útil. Preocuparam-se os magistrados da Suprema Corte em identificar como pressupostos de admissibilidade do mandado de segurança contra ato judicial a inexistência de recurso com efeito suspensivo e o dano provocado pelo ato ilegal.

Essas são a balizas do conceito jurisprudencial que foi adotado pela Lei 12.016/1999, ao exigir uma lesão provocada por ato ilegal (pressuposto de todo e qualquer mandado de segurança) e que o ato judicial impugnado esteja sujeito a recurso sem efeito suspensivo:

“Artigo 5º — Não se concederá mandado de segurança quando se tratar:

(…)

II — de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo.

A lei pacificou as angústias e divergências sobre o uso do mandado de segurança contra ato judicial, embora esse instituto tenha sido concebido para combater o ato ilegal de qualquer autoridade. As expressões de reforço, gramaticalmente desnecessárias, terminam por limitar a concretização da ideia primordial.

Isso aconteceu no passado e continua a poluir o vernáculo e o sistema normativo nos dias atuais. Ao se utilizarem expressões redundantes, cria-se um casulo que aprisiona o bem que a norma pretende tutelar. A Lei 13.869/2019 (contra o abuso de autoridade) é pródiga em exageros linguísticos que dificultam a sua adequada aplicação, de que são exemplos os seguintes dispositivos:

“Artigo 9º — Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

(…)

Artigo 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:

(…)”.

Não há necessidade de algo estar em manifesta desconformidade com as hipóteses legais para ser considerado ilegal. Se a conduta está em contraste com a norma, é ilegal e ponto final.

Impor medida descabida é ilegal sem que a conduta, para ser censurada, precise ser “manifesta”.

É possível que a restrição ao uso do mandado de segurança contra ato judicial tenha origem na crença de que não podia cometer ilegalidade quem tinha o dever de repará-la.

Foram transferidas, no entanto, da qualificação da autoridade para a do ato ilegal que dela emana as barreiras psicológicas que impedem o uso simples, amplo e objetivo do mandado de segurança para remediar a ilegalidade, seja ela qual for e venha de onde vier.