Reajuste de plano de saúde aos 59 anos é legítimo

De exceção à regra geral, em pouco tempo a saúde suplementar no Brasil se tornou regra geral de poucas exceções.

Cada vez com maior volume e intensidade, os vazios da assistência pública à saúde, que mais na forma que no conteúdo a Constituição estabelece ser dever do Estado (art. 196), cedem espaço à pressão econômica e social pela presença do privado na assistência à saúde de pessoas e de grupos.

Ao contrário, porém, e de novo ao contrário, do que diz o artigo 199 do texto constitucional, o privado não é livre nesse espaço.

E na verdade ele não pode ser livre nesse espaço, em que a vulnerabilidade pessoal do usuário se potencializa pela natureza indisponível e fundamental do direito à saúde.

Daí o rigor que se impõe à regulação e à fiscalização das atividades privadas de saúde suplementar, submetidas a um dirigismo contratual necessário e que se, de um lado, objetiva a proteção individual do consumidor dessas atividades, de outro lado, e ao mesmo tempo, tem em vista também que se mantenha viável a prestação dos serviços privados à massa dos usuários, no presente e no futuro.

Dever de equilíbrio no sistema de saúde suplementar
Por isso, ainda, a objetiva disciplina voltada à preservação do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de assistência continuada à saúde, cuja necessidade avulta nos casos em que essa assistência não seja apenas individual (como nos planos individuais da RN ANS 195/2009, artigo 3º) mas, antes, sirvam para cobertura de massa de empresa (como nos planos empresariais do artigo 5º) ou à ou à cobertura da atenção prestada à população com vínculo profissional, classista ou setorial (como nos planos coletivos por adesão do artigo 9º).

Na relação contratual, a preservação do equilíbrio se estabelece, basicamente, pela adequação e pela aplicação de reajustes nas prestações dos usuários, estando no artigo 15 da Lei 9.656/98 a regra que admite “a variação das contraprestações pecuniárias” desses produtos e serviços “caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS”, e a vedação da variação por alteração de faixa etária “para os consumidores com mais de sessenta anos de idade” (artigo 15, parágrafo único).

O Estatuto do Idoso e a RN ANS 63/2003
Para cumprir o comando da norma legal, depois secundada pelo Estatuto do Idoso, que data de 2003 e cujo artigo 15, § 3º, interdita “a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”, a ANS editou a RN 63/2003, que “define os limites a serem observados para adoção de variação de preço por faixa etária nos planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 2004.”

E nessa regulação a RN ANS 63/2003 define a adoção obrigatória, para efeito de reajuste por variação de idade, de dez faixas etárias (artigo 2º), segundo o seguinte cronograma:

I – 0 (zero) a 18 (dezoito) anos;
II – 19 (dezenove) a 23 (vinte e três) anos;
III – 24 (vinte e quatro) a 28 (vinte e oito) anos;
IV – 29 (vinte e nove) a 33 (trinta e três) anos;
V – 34 (trinta e quatro) a 38 (trinta e oito) anos;
VI – 39 (trinta e nove) a 43 (quarenta e três) anos;
VII – 44 (quarenta e quatro) a 48 (quarenta e oito) anos;
VIII – 49 (quarenta e nove) a 53 (cinqüenta e três) anos;
IX – 54 (cinqüenta e quatro) a 58 (cinqüenta e oito) anos;
X – 59 (cinqüenta e nove) anos ou mais.

Além disso, a RN ANS 63/2003 estabelece que “os percentuais de variação em cada mudança de faixa etária deverão ser fixados pela operadora”, observados, nos termos do artigo 3º, os seguintes critérios:

I – o valor fixado para a última faixa etária não poderá ser superior a seis vezes o valor da primeira faixa etária;
II – a variação acumulada entre a sétima e a décima faixas não poderá ser superior à variação acumulada entre a primeira e a sétima faixas;
III – as variações por mudança de faixa etária não podem apresentar percentuais negativos.

Foi esta a fórmula que se fixou para obstar variações abusivas ou mesmo extorsivas, em prejuízo ao consumidor e, assim, ao próprio sistema de assistência suplementar, que nem do consumidor pode prescindir nem pode descarta-lo, como o descartaria quando, de forma abrupta e sem justificação, onerasse sua prestação de maneira a inviabilizar a continuidade do contrato.

A questão dos reajustes aos 59 anos
Apesar disso tudo, já se notam questionamentos contra a legitimidade do programa normativo, que foi constituído em proteção ao usuário e ao equilíbrio das relações entre esse usuário, a massa de seus pares e a instituição que opera ou administra o plano coletivo.

Contra o programa normativo afirma-se que, mesmo se contemplados em contrato e na RN ANS 63/2003, e mesmo se admitidos pelo Estatuto do Idoso, reajustes quando o usuário complete 59 anos ou às vésperas disso seriam por si sozinhos fraudulentos ou abusivos.

Ao contrário, entretanto, além de decorrer de dever estabelecido pelo artigo 2º da RN ANS 63/2003, nos contratos privados de assistência à saúde, os reajustes escalonados por alteração de faixa etária, inclusive quando o usuário complete 59 anos de idade, se fundamentam em causa necessária.

É que, como os seguros em geral, os planos de saúde têm base no mutualismo, sendo com base nele que se ajusta a necessidade de revisão das contraprestações dos usuários, com o objetivo de preservar a higidez do produto e resguardar, nos períodos subseqüentes, o interesse de cobertura da coletividade segurada como um todo.

Por isso é que, no Superior Tribunal de Justiça, já se assentou como os contratos de proteção coletivos, “para atingir sua finalidade, deve[m] ser continuamente revisados (adequação atuarial), porquanto os riscos predeterminados a que os interesses segurados estão submetidos são, por natureza, dinâmicos”[1].

Também por isso a razão da doutrina especializada, que afirma:

Considerando que o Estatuto do Idoso é norma de proteção específica de pessoas de idade igual ou superior a 60 anos de idade, como preceituado em seu artigo 1º da Lei 10.741/2003, a leitura do artigo 15, § 3º, da Lei 10.741/2003 deve ser realizada no sentido de concluir pela proibição de aumentos de mensalidade de contratos de planos e de seguros de assistência à saúde para consumidores que atinjam 60 anos. Ou seja, o último aumento permitido por mudança de faixa etária deve ocorrer aos 59 anos do consumidor, restando vedado qualquer outro acima desta idade.

Assim, à medida que o indivíduo envelhece, sua mensalidade segue aumentando, de acordo com a sua faixa etária, pois se especula que, quanto mais velho, mais doente é o consumidor, e daí a razão de ter que pagar mais pela assistência à saúde (…)

Não se afigura desarrazoada a cláusula contratual de plano de saúde que, de forma clara e destacada, preveja o aumento da contribuição do aderente ao plano em razão de ingresso em faixa etária em que os riscos de saúde são abstratamente maiores, em razão da lógica atuarial que preside o sistema[2].

A posição do Superior Tribunal de Justiça
E ainda pelas razões postas foi que, examinando especificamente a questão dos reajustes por faixa etária, a sua causa econômica, vinculada ao incremento do risco subjetivo, e a sua base legal e contratual, vinculada aos parâmetros consolidados na RN ANS 63/2003, o Superior Tribunal de Justiça decidiu:

DIREITO CIVIL. CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CLÁUSULA DE REAJUSTE POR MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. INCREMENTO DO RISCO SUBJETIVO. SEGURADO IDOSO. DISCRIMINAÇÃO. ABUSO A SER AFERIDO CASO A CASO. CONDIÇÕES QUE DEVEM SER OBSERVADAS PARA VALIDADE DO REAJUSTE.

1. Nos contratos de seguro de saúde, de trato sucessivo, os valores cobrados a título de prêmio ou mensalidade guardam relação de proporcionalidade com o grau de probabilidade de ocorrência do evento risco coberto. Maior o risco, maior o valor do prêmio.

2. É de natural constatação que quanto mais avançada a idade da pessoa, independentemente de estar ou não ela enquadrada legalmente como idosa, maior é a probabilidade de contrair problema que afete sua saúde. Há uma relação direta entre incremento de faixa etária e aumento de risco de a pessoa vir a necessitar de serviços de assistência médica.

3. Atento a tal circunstância, veio o legislador a editar a Lei Federal nº 9.656/98, rompendo o silêncio que até então mantinha acerca do tema, preservando a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro de saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo, algumas restrições e limites a tais reajustes.

4. Não se deve ignorar que o Estatuto do Idoso, em seu art. 15, § 3º, veda “a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”. Entretanto, a incidência de tal preceito não autoriza uma interpretação literal que determine, abstratamente, que se repute abusivo todo e qualquer reajuste baseado em mudança de faixa etária do idoso. Somente o reajuste desarrazoado, injustificado, que, em concreto, vise de forma perceptível a dificultar ou impedir a permanência do segurado idoso no plano de saúde implica na vedada discriminação, violadora da garantia da isonomia.

5. Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em razão da mudança de faixa etária, desde que atendidas certas condições, quais sejam: a) previsão no instrumento negocial; b) respeito aos limites e demais requisitos estabelecidos na Lei Federal nº 9.656/98; e c) observância ao princípio da boa-fé objetiva, que veda índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o segurado (…)[3].

Conclusões
Não parece ser legítimo e, antes, parece ser danoso ao sistema de saúde suplementar — e, portanto, aos seus destinatários finais — depor contra os reajustes por variação de faixa etária nos planos de saúde sob o abstrato argumento da abusividade quando, ao contrário, tenham sido observados os critérios estabelecidos nas normas de regência para tais reajustes.

Afinal, sua necessidade está atrelada à manutenção da massa de usuários e de sua assistência. Está atrelada àquela cooperação social de que tratou o saudoso Calmon de Passos, em parecer que fez história:

Todo aporte financeiro atribuído pelo segurado à seguradora com que contrata, intitulado de prêmio, é, em verdade parcela que, integrada a outras, constitui um fundo comum de propriedade e destinação comunitária ou coletiva de todos os segurados. Dessa universalidade apenas são extraídos os valores indispensáveis para sua administração, que inclui a justa retribuição do empreendedor, tudo isso regulado por disposições legais de natureza cogente objetivando, precisamente, acentuar e resguardar a propriedade coletiva desse patrimônio e sua destinação social e específica[4].

[1] STJ-2ª Seção, REsp 880.605/RN, rel. Min. Massami Uyeda, DJe de 17.09.2012.

[2] Cristiano Heineck Schmitt, A “hipervulnerabilidade” do consumidor idoso, Revista de Direito do Consumidor, vol. 70, 2009, p. 139 ss.

[3] STJ-4ª Turma, REsp 866.840/SP, rel. Min. Raul Araújo, DJ de 17.08.2011.

[4] José Joaquim Calmon de Passos. O risco na sociedade moderna e seus reflexos na teoria da responsabilidade civil e na natureza jurídica do contrato de seguro. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 5, agosto, 2001. Disponível em:

Nascido em Brasília em 10 de julho de 1971, formou-se em Direito no Uniceub em 1993. É pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Processo Civil. Conselheiro Seccional eleito por duas gestões 2004/2009, tendo presidido a Comissão de defesa e prerrogativas da OAB/DF. Vice-presidente da OAB/DF no período de 2008/2009. Ocupou o cargo de Secretário-Geral da Comissão Nacional de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB na gestão 2007/2010. Eleito Presidente da OAB/DF para o triênio 2013/2015, tendo recebido a maior votação da classe dos advogados no Distrito Federal com 7225 votos. É diretor do Conselho Federal da OAB na gestão 2016/2019, corregedor-geral da OAB e conselheiro federal pela OAB/DF.