Por uma releitura da Súmula 339 do Supremo

A lei é basilar para o Estado Democrático. Mais do que sujeito de direitos, o Estado é guardião da ordem jurídica, razão pela qual lhe incumbe zelar pela legalidade, embora, não raro, sob o pálio de interpretações normativas, descure da observância de garantias fundamentais, como o direito a igualdade. Cite-se como exemplo a aplicação da súmula 339 do STF. [1]

Nos termos do enunciado da colenda corte, não cabe ao Judiciário, com base no princípio da isonomia, aumentar vencimentos dos servidores públicos. Convém rememorar alguns dos precedentes que levaram à formação da súmula.

No Recurso extraordinário 40.914/DF, servidores autárquicos celetistas pleiteavam o mesmo reajuste concedido aos servidores estatutários. No Recurso extraordinário 42.186/MA, professores efetivos e interinos buscavam equiparação aos vencimentos de professores catedráticos. Em ambas as decisões, de 1960, foram negados os pedidos, em razão da separação de poderes e da vedação ao Judiciário de atuar como legislador positivo.[2]

Não faltam bons argumentos para a defesa da súmula. As carreiras, ainda que assemelhadas, tem regimes, atribuições, requisitos de ingresso distintos, somente alguns dos aspectos que justificam as diferenças de vencimentos. Mas qual o conceito de vencimentos?

O sentido do termo não é unívoco no ordenamento. Em linhas gerais, entende-se que vencimento é a parcela básica remuneratória do cargo efetivo; a remuneração é o vencimento acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei; já os vencimentos englobam o vencimento, a remuneração e outras vantagens não incorporáveis à remuneração, como o salário família, adicional de férias etc. [3]

Como se vê, assim como vantagens inerentes a cada carreira integram os vencimentos, outras parcelas de caráter geral, a exemplo do auxílio alimentação, são, ou deveriam ser, idênticas para todo o funcionalismo.

No âmbito do Executivo, autarquias e fundações federais, a Lei 8.460/1992 dispõe que o auxilio alimentação tem natureza indenizatória, custeando, por óbvio, as despesas para a qual se destina. Atualmente, tem valor regionalizado, em função do custo de vida. Assim, o benefício em São Paulo é maior que em Goiás, pressupondo-se que valores distintos propiciam utilidade equivalente.

No entanto, surpreende que servidores públicos federais residentes em um mesmo município recebam auxilio alimentação diferenciados. Assim ocorre, há anos, auferindo os servidores do Tribunal de Contas da União, Ministério Público, Judiciário e Legislativo federais, valores significativamente superiores aos demais servidores.

Provocados a intervir, vários órgãos do Judiciário, com arrimo na Sumula 339, negam os pedidos de equiparação.[4] Mas, se inexiste desigualdade fática, na medida em que idênticas as despesas com alimentação, o que justifica a desigualdade jurídica?

Configura-se claramente violação à isonomia e à Constituição. Como leciona Bandeira de Mello, o “princípio da igualdade consiste em assegurar regramento uniforme às pessoas que não sejam entre si diferenciáveis por razões lógica e substancialmente (isto é, em face da Constituição) afinadas com eventual disparidade de tratamento.”[5]

Não se pode esquecer que a independência entre os poderes, que caracteriza as repúblicas modernas, nasce como uma garantia para os cidadãos, e não como um subterfúgio para a perpetuação de inconstitucionalidades. O controle jurisdicional dos atos normativos é, por isso mesmo, um dos sustentáculos da democracia e do equilíbrio entre os poderes.[6]

A isonomia de vencimentos é, no que aplicável, respeitadas as diferenças específicas das carreiras, consectário lógico do regime jurídico dos servidores, conforme parágrafo 4º, artigo 41, da Lei 8.112/1990[7], diretriz adotada na redação original da Constituição Federal no parágrafo 1º, artigo 40, posteriormente alterado pela Emenda Constitucional 19/1998. Entretanto, como bem pontuado por Jose Afonso da Silva,

A EC-19/1998 eliminou a determinação especial de isonomia de vencimentos, que constava do artigo 39, parágrafo 1º. Isso não significa que a isonomia tenha deixado de existir nas relações funcionais. Não, porque o princípio geral continua intocável no caput do artigo 5º, na tradicional forma da igualdade perante a lei. Se ocorrer nas relações funcionais, inclusive de vencimentos, remuneração ou mesmo subsídios, um tratamento desigual para situações iguais, aí se terá a aplicação do princípio da isonomia.[8]

A Súmula 339 não veda, de per si, qualquer exame acerca da isonomia de vencimentos entre servidores públicos. Ainda que uma norma ou precedente permaneça inalterado, seu sentido pode sofrer, com o tempo, uma revolução completa.[9] Na lição de Luis Roberto Barroso,

o relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido.[10]

O ativismo judicial, em particular da corte constitucional, não depõe contra a separação dos poderes, ao contrário, é uma exigência para preservação e atualização da força normativa e do sentido material da Constituição: “ou se confere liberdade ao intérprete para concretizá-los (os princípios jurídicos constitucionais), ou se renuncia à pretensão de manter viva a Constituição.”. [11]

Não é aceitável que a administração pública permaneça inerte, circunscrita formalmente à lei, insculpida em diversos argumentos: não há orçamento, inexistem recursos para créditos adicionais; a competência para aumentar o auxílio alimentação é do Executivo, a omissão não pode ser suprida pelo Judiciário.

O princípio da legalidade está, contemporaneamente, sob a perspectiva material, assentado na conformidade do ato administrativo não só à lei, mas também à Constituição,[12] valores democráticos e de justiça social.[13] Como ensina Canotilho, em um Estado constitucional verdadeiro, distingue-se claramente a legitimidade do direito, dos direitos fundamentais, do processo legislativo, e do exercício do poder político. [14]

A súmula 339 do STF carece de urgente atualização, abrindo-se excelente oportunidade na discussão acerca da equiparação do auxílio-alimentação, pendente de decisão em sede de repercussão geral, no âmbito do Superior Tribunal Federal.[15]

Resta aguardar a decisão que, espera-se, reafirmará o princípio da igualdade. Ou concluirá que a diferenciação é justificável, ratificando o status quo vigente, relegando os servidores do Executivo a uma segunda categoria, com a seguinte mensagem: “comam menos”.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, t. III.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Súmula nº 339. Disponível em:

BRASIL. Lei n.º 8.112/90. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8112cons.htm >. Acesso em: 01 jun. 13.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Repercussão geral no Recurso Extraordinário n.º 710.293/SC. Disponível em:

BRITO, Edvaldo. Poder Executivo. In Tratado de Direito Constitucional. Coord. SILVA Ives Gandra da; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Válder do. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1033-1082.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.

CONSULTOR JURÍDICO. Justiça não pode equiparar auxílio de servidores. Revista Consultor Jurídico, 15 de junho de 2013. Disponível em:

GUERRA, Sérgio. Discricionariedade administrativa – Limitações da vinculação legalitária e propostas pós-positivistas. In Direito Administrativo e seus novos paradigmas. Coord. ARAGÃO Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 205-240.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Grandes temas de Direito Administrativo. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Malheiros, 2010.

MODESTO, Paulo. Conceito de remuneração e de vencimentos na constituição de 1988. Remuneração do cargo e remuneração dos agentes . Vantagens remuneratórias extensíveis aos inativos. Revista Diálogo Jurídico, n.º 10, jan/02, Salvador, Bahia, Brasil. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 13.

QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial. Coimbra: Almedina, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2011.


[1]Súmula n.º 339: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia.” BRASIL. Superior Tribunal Federal. Súmula nº 339. Disponível em:

[2]Idem.

[3]MODESTO, Paulo. Conceito de remuneração e de vencimentos na constituição de 1988. Remuneração do cargo e remuneração dos agentes. Vantagens remuneratórias extensíveis aos inativos. Revista Diálogo Jurídico, n.º 10, jan/02, Salvador, Bahia, Brasil. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 13.

[4] Por exemplo, decisão da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU),Processo 0502844-72.2012.4.05.8501. Revista Consultor Jurídico, 15 de junho de 2013. Disponível em:

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Grandes temas de Direito Administrativo. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 198.

[6] BRITO, Edvaldo. Poder Executivo. In Tratado de Direito Constitucional. Coord. SILVA Ives Gandra da; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Válder do. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1033-1082, p. 1036-1037.

[7] In verbis: “§ 4o É assegurada a isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas do mesmo Poder, ou entre servidores dos três Poderes, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.”. BRASIL. Lei n.º 8.112/90. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8112cons.htm >. Acesso em: 01 jun. 13.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 688.

[9] QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial. Coimbra: Almedina, 2000, p. 111.

[10] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, t. III. p. 7.

[11] COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 107.

[12] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 141.

[13] GUERRA, Sérgio. Discricionariedade administrativa – Limitações da vinculação legalitária e propostas pós-positivistas. In Direito Administrativo e seus novos paradigmas. Coord. ARAGÃO Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 205-240, p. 237-238.

[14]CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 688-689.

[15] BRASIL. Superior Tribunal Federal. Repercussão geral no Recurso Extraordinário n.º 710.293/SC. Disponível em:

 

Nascido em Brasília em 10 de julho de 1971, formou-se em Direito no Uniceub em 1993. É pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Processo Civil. Conselheiro Seccional eleito por duas gestões 2004/2009, tendo presidido a Comissão de defesa e prerrogativas da OAB/DF. Vice-presidente da OAB/DF no período de 2008/2009. Ocupou o cargo de Secretário-Geral da Comissão Nacional de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB na gestão 2007/2010. Eleito Presidente da OAB/DF para o triênio 2013/2015, tendo recebido a maior votação da classe dos advogados no Distrito Federal com 7225 votos. É diretor do Conselho Federal da OAB na gestão 2016/2019, corregedor-geral da OAB e conselheiro federal pela OAB/DF.