Novo CP põe em risco segurança da sociedade

O Código Penal brasileiro é o principal conjunto de normas da seara criminal de nosso país e está em vigor desde 1942. Passou por diversas modificações pontuais e pela reforma de toda sua parte geral, em 1984. A necessidade de adequação da legislação aos reclamos sociais fez com que ao longo do tempo fossem incorporadas ao nosso direito diversas leis penais que não estão no corpo do código, a chamada legislação especial ou extravagante. Dentre outras dezenas, podem ser referidas a Lei de Drogas, o Estatuto do Desarmamento, o Código de Trânsito, a Lei dos Crimes Hediondos, a Lei de Proteção ao Meio Ambiente e a Lei de Lavagem de Dinheiro.

No ano de 2011, foi criada pelo Senado Federal uma comissão de juristas para modernizar o Código Penal e que tinha como objetivos principais: unificar as leis esparsas, compatibilizar o Código Penal com a Constituição de 1988, além de tornar proporcionais as penas e buscar soluções alternativas à pena “de prisão”. Da primeira reunião, realizada aos 18 de outubro de 2011, à entrega do relatório final, no dia 18 de junho de 2012, trabalharam os juristas seus integrantes para apresentar ao Senado Federal o anteprojeto de Código Penal com 543 artigos, em lugar dos atuais 361.

Lamentavelmente, pese a capacidade e o saber jurídico de vários de seus membros, a meritória intenção produziu, além de avanços e bons resultados, também normas ruins.

A árdua tarefa não poderia ser bem elaborada em apenas oito meses, a nosso ver, quanto mais porque não houve discussões com as principais faculdades de direito do país nem com as principais instituições e entidades de classes da área jurídica. Ademais, o diálogo com a sociedade não se deu de modo satisfatório, praticamente limitando-se à realização de audiências públicas que, dado o número enorme de interessados, inviabilizava o aprofundamento de qualquer questão, além de centrar-se em temas polêmicos como aborto e eutanásia, na maioria das vezes. Na audiência realizada em São Paulo, para que se tenha uma ideia, dado o número de interessados, cada pessoa podia falar por apenas três minutos.

Reflexo do açodamento foram algumas graves falhas no corpo do pretenso novo código.

A mais incrível foi a criação de um crime sem pena (racismo e dos crimes resultantes de preconceito e de discriminação“ — artigo 472 ), o que corresponde a deixar as graves condutas impunes, pois “não há pena sem lei anterior que a defina”. Como se não bastasse, no que tange ao crime de racismo, repetiram-se erros criticados pela doutrina desde a redação originária da vetusta “Lei Afonso Arinos”, já revogada em parte, como “recusar hospedagem em estalagem“, o que configura lamentável e indesculpável falha.

Também foi mantida a figura da “violação de comunicação telegráfica” (artigo 151, parágrafo 1º, II), o que não se afigura consentâneo à adequação da legislação à realidade atual.

Estas últimas previsões e o ressuscitar da “irresponsabilidade penal em razão da confusão mental” (em hipótese semelhante à desastrosa previsão do Código Penal de 1891, que tantas injustas absolvições gerou), como se vê no “excesso não punível” do artigo 28, parágrafo 3º, revelam não ter sido plenamente bem sucedida a pretendida “modernização” do Código Penal.

Há falhas no projeto de lei do Código Penal, também, à farta, no que tange à proporcionalidade das penas. Basta um confronto dos crimes contra a pessoa ou dos crimes contra a dignidade sexual com os crimes contra a fauna, para que se percebam previsões equivocadas. Pune-se no projeto a omissão de socorro a animais em perigo (artigo 394) com prisão de um a quatro anos. Em contrapartida, a omissão de socorro a um ser humano em idêntica situação ou a uma criança abandonada gera prisão de um a seis meses de prisão ou multa. Promover uma “rinha de galos” que “possa resultar lesão” nos animais, gerará, pelo novo projeto, pena de dois a seis anos de prisão, pena muito maior que provocar, intencionalmente, uma lesão em um humano (prisão de seis meses a um ano — artigo 129, “caput”) ou mesmo mata-lo, na forma da eutanásia (prisão de dois a quatro anos — artigo 122). Nada se compara, todavia, ao delito do artigo 399: molestar cetáceos (baleias e golfinhos, por exemplo) em águas brasileiras gera pena de prisão de dois a cinco anos. Molestar sexualmente alguém (uma adolescente, exemplificativamente), sem violência ou grave ameaça, gera punição de um a dois anos de prisão. De se concluir, portanto, que entre socorrer um cão atropelado ou uma criança, é mais vantajoso socorrer o cão, pois a pena da omissão de socorro de humano é menor; como também entre molestar sexualmente uma adolescente ou tentar fotografar uma baleia a pequena distância, em termos de pena, é preferível, aos olhos do projeto, molestar a adolescente. Ou seja, de acordo com o trabalho da comissão de juristas, a proteção penal aos seres humanos é menos importante do que aquela voltada aos animais irracionais.

No que tange à proteção à flora, ocorre o contrário. Muito embora nossas florestas (especialmente a Amazônica) sejam alvo da cobiça internacional e se afigure a defesa dos adensamentos vegetais assunto de importância ímpar, tanto para o Brasil quanto para o restante do mundo, destruir inteiramente uma floresta nativa provoca uma reação penal pífia: prisão de três meses a um ano (artigo 410), mesma pena, aliás, para quem danificar (não necessariamente destruir) uma vegetação de ornamentação de logradouro público (artigo 409). Vale dizer: para os juristas do projeto, arrancar as pétalas de uma rosa plantada na pracinha ou destruir toda uma floresta são condutas de igual gravidade.

Também não se cumpriu plenamente o papel de eliminar figuras penais desnecessárias, continuando a ser crime o comércio de motosserra sem licença da autoridade (artigo 412), o que poderia perfeitamente ser infração meramente administrativa.

Em inexplicável atitude, revogou-se o crime de desacato, mas, em aparente postura corporativa, criou-se o delito de “violação de prerrogativa de advogado” (artigo 300). Sobre as prerrogativas violadas de outros profissionais liberais ou empregados, por exemplo, ou de agentes públicos, nada se previu.

No que tange às drogas, deixou de ser crime portar droga para consumo pessoal e estabeleceu-se que, “salvo prova em contrário”, presume-se não ser tráfico ter consigo quantidade de droga “suficiente para o consumo médio individual por cinco dias” (artigo 212, parágrafo 4º). Embora extremamente polêmico o assunto, cabem algumas considerações, com vistas a provocar a reflexão. Qual o consumo médio de LSD ou de cocaína no Brasil? Como se fará este cálculo? A partir do consumo dos usuários eventuais (quem saberia quantos são e quanto consomem)? Ou a partir dos viciados internados nos hospitais públicos? Supondo-se que as autoridades sanitárias digam que a média de consumo de “crack” no Brasil é de cinco “pedras” (porções) diárias. Por certo que nenhum traficante minimamente inteligente trará consigo vinte e seis porções da droga, pois se flagrado com vinte e cinco porções ou menos (suposta quantidade de drogas correspondente a cinco dias para ser considerada porte para “uso comum”), facilmente poderá alegar ser um mero usuário, dificultando a atuação dos órgãos de repressão ao tráfico e facilitando a situação do traficante. Também parece óbvio que o consumo de drogas aumentará à medida em que a polícia não poderá reprimir o porte do crack, da cocaína, do LSD, do ecstasy ou de qualquer outra droga, para “uso próprio”. Outra questão importante: como o Estado brasileiro não venderá as drogas, evidentemente que os traficantes aplaudirão em pé a medida, pois seus lucros aumentarão consideravelmente. Vale lembrar que em nosso país as facções do crime organizado dominam cada vez mais amplamente tal atividade ilícita, ou seja, aumentar o poderio econômico de marginais perigosos e armados é atentar contra a segurança de toda a população. Ademais, há forte tendência de aumento dos viciados em drogas como o crack, sendo possível prever o aumento de áreas dominadas por usuários e viciados, as chamadas “cracolândias”, por todo o país, com enormes problemas na área da saúde pública, para não se cogitar dos problemas sociais, familiares, de urbanismo e de segurança pública também gerados a partir do surgimento de novos dependentes das drogas (mormente as chamadas “drogas pesadas”).

Quanto aos delitos patrimoniais, é notório ser o roubo uma das infrações que mais causa desassossego à população honesta. Inexplicavelmente, não só a comissão não aumentou suas sanções (como aguarda a sociedade) como diminuiu as penas do roubo simples de reclusão de quatro a dez anos para prisão de três a seis anos (artigo 157, “caput”). Também reduziu as consequências penais decorrentes do roubo com emprego de arma ou em concurso de pessoas (artigo 157, parágrafo 3º) de aproximados cinco anos e quatro meses a quinze anos para uma pena de prisão de quatro a oito anos. Saliente-se que, se for aprovado o projeto nos moldes atuais, não só os futuros roubadores serão beneficiados, como também ganhariam a liberdade mais cedo ou teriam extintas suas penas todos os condenados por roubo no país, já que a lei penal mais favorável ao réu, retroage (artigo 5º, XL, da Constituição Federal). Um dos graves problemas das novas penas seria a possibilidade, na maioria dos casos, de início de cumprimento no regime aberto, vale dizer, na própria residência do criminoso. Ora, o que fará o comerciante que acabou de ser roubado ao saber que seu algoz foi condenado a “cumprir pena” nas vizinhanças, sem fiscalização? Evidente o descrédito que se gerará à Justiça Penal. Também foi aprovado pela comissão de juristas que o atual crime de extorsão (artigo 158 do CP em vigor —obtenção da senha de cartões bancários mediante grave ameaça, por exemplo, muitas vezes chamado de “sequestro relâmpago”, quando a vítima é mantida em poder dos algozes) serão tidos como “roubos por equiparação” (artigo 157, parágrafo 1, II), impossibilitando a punição por roubo e extorsão em concurso material (penas somadas), como é admitido na jurisprudência hoje.

Também sem que se compreenda, foram revogadas a figura do estupro seguido de morte, da posse sexual mediante fraude e do ato obsceno. Quanto a este último, se alguém for pego a se masturbar em plena praça pública ou se um casal decidir praticar sexo em frente a um edifício residencial, a polícia não poderá fazer absolutamente nada, pois o fato será atípico.

O último artigo do projeto de novo código cuida de revogar expressamente todas as normas penais previstas em cento e dez leis esparsas. São muitas leis. Muitas boas e muitas ruins. Dada sua quantidade, não há quem discorde da necessidade de enxugamento da legislação. Nada obstante, à vista das inúmeras falhas detectadas na elaboração do projeto, principalmente pelo pequeno prazo concedido para sua conclusão, corre-se o risco da criação de dezenas de abolições penais indesejadas, em favorecimento de criminosos já condenados, ensejando até eventuais solturas de alguns presos e a breve necessidade de uma nova revisão da legislação penal.

Enfim, embora existam pontos favoráveis no novo projeto, há demasiadas previsões a ensejar reforma e preocupantes são as falhas no que tange à proporcionalidade das penas e à sistematização do futuro código, como também encontram-se exemplos de incompatibilidade aos objetivos da comissão de promoverem a modernização e a adequação dos bens jurídicos protegidos em face da valoração dada na Constituição Federal. Pode-se concluir que a comissão de juristas, no exíguo intervalo de tempo que lhe foi concedido, não deu conta de toda a hercúlea tarefa almejada. Por conseguinte, a aprovação do texto do atual projeto de lei como se apresenta representa um enorme risco à segurança jurídica brasileira e à segurança da sociedade.

 

Nascido em Brasília em 10 de julho de 1971, formou-se em Direito no Uniceub em 1993. É pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Processo Civil. Conselheiro Seccional eleito por duas gestões 2004/2009, tendo presidido a Comissão de defesa e prerrogativas da OAB/DF. Vice-presidente da OAB/DF no período de 2008/2009. Ocupou o cargo de Secretário-Geral da Comissão Nacional de Prerrogativas do Conselho Federal da OAB na gestão 2007/2010. Eleito Presidente da OAB/DF para o triênio 2013/2015, tendo recebido a maior votação da classe dos advogados no Distrito Federal com 7225 votos. É diretor do Conselho Federal da OAB na gestão 2016/2019, corregedor-geral da OAB e conselheiro federal pela OAB/DF.